quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O CASO DO BISPO CATÓLICO CASADO E COM 7 FILHOS - A VÁLIDA ADMINISTRAÇÃO DO SACRAMENTO DA ORDEM - 2

Aplicação prática da doutrina: o caso de D. Salomão Barbosa Ferraz, bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo

Para melhor compreensão da doutrina exposta no primeiro post sobre o tema de que o sacramento da Ordem pode ser validamente conferido mesmo por um bispo que não esteja em comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana, trago como exemplo o peculiar e incomum caso do bispo brasileiro D. Salomão Barbosa Ferraz, já falecido (1880-1969), que foi bispo titular de Eleuterna (título este conferido pelo Papa São João XXIII), e que atuou junto à Arquidiocese de São Paulo.

D. Salomão Ferraz foi um cidadão brasileiro, oriundo do protestantismo, que logrou ser ordenado bispo por D. Carlos Duarte Costa, fundador da Igreja Católica Apostólica Brasileira. D. Carlos Duarte foi válida e licitamente ordenado bispo na Igreja Católica Apostólica Romana por D. Sebastião Leme, então arcebispo coadjutor de São Sebastião do Rio de Janeiro, no ano de 1924. Foi bispo de Botucatu, em São Paulo. Contudo, pela falta de ortodoxia de suas opiniões (como as críticas à infalibilidade papal, a defesa da possibilidade do divórcio e do fim do celibato sacerdotal), veio a ser excomungado em 6 de julho de 1945, e fundou no mesmo dia a Igreja Católica Apostólica Brasileira, até hoje existente.

Pouco após ser excomungado, na Festa da Assunção da Virgem Maria de 1945 (15.08.1945), D. Carlos Duarte ordenou Salomão Barbosa Ferraz para o episcopado. Salomão era um homem casado e pai de sete filhos, tendo sido pastor protestante.

Ocorre que Salomão Ferraz, anos após sua irregular ordenação episcopal pelo bispo excomungado D. Carlos Duarte Costa, manifestou seu desejo de entrar em comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana. Seu pleito não só foi atendido, como ele foi recebido na Igreja pelas mãos do então cardeal Arcebispo de São Paulo sem que fosse reordenado (nem mesmo foi ordenado sob condição), apesar de continuar casado e pai de sete filhos. No dia 8 de dezembro de 1959 (Festa da Imaculada Conceição), às 8:30h, na Capela do Menino Jesus, D. Salomão Ferraz, perante S. Em. Revma. Cardeal D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta (cardeal arcebispo de São Paulo), fez voto de profissão de fé católica e assinou o respectivo termo de compromisso. Nessa mesma igreja, às 9:00h, D. Salomão celebrou a primeira missa como bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, acolitado pelo Pe. Nicolau Rossetti S. J. e Monsenhor Costa Neves. Às 16:00h, o novo bispo católico romano foi recebido pelo Cardeal Motta no palácio Pio XII.

Sua recepção na condição de bispo e exercendo o ministério episcopal deu-se por expressa permissão do Papa São João XXIII (que o fez bispo titular de Eleuterna em 10 de maio de 1963), a quem teve a oportunidade de encontrar uma vez em Roma, bem como tomou parte no Concílio do Vaticano II como padre conciliar[1], morrendo em plena comunhão com a Igreja Católica Apostólica Romana.[2] Seu nome consta como bispo católico romano regular nos principais repositórios de informações sobre bispos católicos.[3] Seguem abaixo algumas fotos suas como bispo católico romano, de modo a corroborar a veracidade das informações:


D. Salomão, junto a bispos brasileiros, na Praça de São Pedro, durante o Concílio Vaticano II.
D. Salomão é o terceiro a contar da direita.
 
 
 
D. Salomão sendo recebido pelo Cardeal Carmelo Motta, arcebispo de São Paulo.
D. Salomão é o bispo sentado à direita.

 
Portanto, esta curiosa situação de um homem casado e pai de sete filhos, que foi aceito como bispo na Igreja Católica Apostólica Romana sem a necessidade de nova ordenação, apesar de ordenado irregularmente e sem mandato pontifício por um bispo excomungado que fundou uma dissidência da Igreja Católica, demonstra a doutrina da Igreja acerca da validade de ordenações feitas fora da comunhão romana, desde que o consagrante seja bispo dotado de sucessão apostólica, empregue a matéria e forma corretas e tenha intenção mínima, nos termos acima já explicados (ainda que o bispo ordenante seja excomungado, cismático ou herege). Não fosse esta a doutrina tradicional da Igreja sobre a questão, Salomão Ferraz jamais poderia ter sido recebido como bispo sem nova ordenação na Igreja Católica Apostólica Romana.

Post Scriptum: Para os que podem ter ficado pensando "mas como pode um homem casado ser aceito como bispo, isto não contraria a disciplina eclesiástica tanto do Oriente como do Ocidente?", lembro apenas de um fato: D. Salomão Ferraz foi recebido na Igreja Católica Apostólica Romana com cerca de 80 anos de idade, idade em que, presumidamente, já mantinha a continência clerical exigida dos bispos.

A questão da exigência histórica de continência dos clérigos em ordens maiores na Igreja Latina, inclusive daqueles que eram casados, é um assunto interessantíssimo e que merece um post especial. Apenas adianto que, historicamente (no primeiro milênio), houve diversos bispos e mesmo Papas legitimamente casados e com filhos. A diferença estava em que, a partir da ordenação, tais homens, embora casados, já não podiam manter vida sexual ativa com suas esposas. Ou seja, os filhos que tiveram foram anteriores à ordenação.



[1] A informação de que D. Salomão Ferraz foi padre conciliar no Concílio do Vaticano II encontra-se também na tese de doutorado em História Social de José Oscar Beozzo, defendida perante a USP, intitulada "Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II" e baseada nas atas do Concílio. Eis a relação das intervenções de D. Salomão no Concílio: 224 - Dom Salomão Ferraz - Vat. II: Io , 2°, 3° c 4° períodos [11 intervenções] AS I/1, 581-83 - IX; AS I/3, 328; AS II/I,662; AS II/3, 459-60; AS II/4, 853-55; AS II/5, 890-91; AS III/4, 730; AS III/4, 894-97; AS III/7, 844; AS III/8, 992-93; AS IV/2, 153-53 (BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-1965. 2001. 436 f. Tese. (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p. 203).
[2] O necrologio publicado nos atos oficiais da Sé Apostólica de 1969 noticia a morte de D. Salomão Ferraz, bispo titular de Eleuterna (Monsig. Ferraz Salomao, Vescovo tit. di Eleuterna). Acta Apostolicae Sedis - Commentarium Officiale - Vol. LXI - 1969 - pág. 360.
[3] Basta buscar o nome de Salomão Barbosa Ferraz em sítios eletrônicos que consolidam os dados de bispos ordenados, como http://www.catholic-hierarchy.org/bishop/bferraz.html e http://www.gcatholic.org/, para verificar a veracidade da informação aqui veiculada.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A VÁLIDA ADMINISTRAÇÃO DO SACRAMENTO DA ORDEM - 1

Um bispo que possua sucessão apostólica, mas que não esteja em comunhão com a Sé Romana, pode ordenar outros homens validamente? 
A resposta, em regra, é SIM
Para responder à consulta de um amigo, tive recentemente de entrar em um terreno extremamente mal compreendido sobre como a Igreja Católica Apostólica Romana encara a administração do sacramento da Ordem por bispos que não estejam em plena comunhão com a Sé Romana, mas que apresentem linhagem ou sucessão apostólica. A resposta não é simples, mas pretendo tentar explicar como tradicionalmente é vista a questão da validade das ordenações realizadas por outras Igrejas que estejam fora da comunhão romana. Adianto desde já que é possível sim, dadas algumas condições, haver homens validamente ordenados em outras Igrejas que não estão em comunhão com a Igreja Católica Romana. Em relação às Igrejas Ortodoxas, jamais houve dúvidas disso. Contudo, a situação é mais nebulosa quanto a outros grupos, razão pela qual passo a explanar o que segue.
Segundo a Teologia católica romana, são dois os elementos necessários para a válida administração do sacramento da Ordem: 1) matéria devida; 2) forma adequada.
Quanto à matéria e forma devidas para o sacramento da Ordem, estas encontram-se na imposição das mãos do celebrante sobre o homem que está sendo ordenado (matéria) juntamente com as palavras que significam o efeito sacramental de constituir um ministro sagrado (forma), como define S. S. o Papa Pio XII na Encíclica Sacramentum Ordinis, n. 4:
"Portanto, invocada a luz divina, por Nossa Suprema Autoridade Apostólica e por meio de uma ciência certa, declaramos, e, quanto necessário, decretamos e prescrevemos: que a única matéria das Sagradas Ordens do Diaconado, Presbiterado e Episcopado é a imposição das mãos; e que a única forma são as palavras cuja aplicação determina a matéria, que univocamente significam os efeitos sacramentais – a saber, o poder da Ordem e a graça do Espírito Santo – e que são aceitas e usadas pela Igreja neste sentido."[1] (tradução nossa do original latino)

A forma adequada relaciona-se às palavras que devem ser proferidas como fórmula sacramental. Pode haver variação nestas palavras, desde que transmitam minimamente o significado de que se trata da ordenação, pela graça do Espírito Santo, de um ministro sagrado para o exercício dos poderes inerentes a tal ministério (celebrar os sacramentos, dentre os quais desponta a Eucaristia).
De fato, ademais da variação própria da fórmula para os distintos graus do sacramento da Ordem (diácono, presbítero e bispo), entre os diversos ritos litúrgicos há variação na fórmula utilizada para o mesmo grau do sacramento, sem que isto afete a validade do mesmo, desde que preservado o significado mínimo acima indicado. O próprio ritual romano atual apresenta fórmula distinta daquela utilizada antes da reforma litúrgica levada a cabo por S. S. o Papa Paulo VI após o Concílio do Vaticano II. Vejamos algumas destas fórmulas de ordenação para o grau de bispo:

FORMA EXTRAORDINÁRIA DO RITO ROMANO
(Forma essencial contida no livro litúrgico Pontificale Romanum, conforme determinação de S. S. o Papa Pio XII por meio da Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis)
"Perfazei no vosso sacerdote a suma de vosso ministério, e revestindo-o dos ornamentos de toda glória, santificai-o pelo orvalho da celeste unção."[2]

FORMA ORDINÁRIA DO RITO ROMANO
(Forma essencial contida no livro litúrgico Pontificale Romanum de 1968, promulgado por S. S. o Papa Paulo VI e revisto por ordem de S. S. o Papa São João Paulo II)
"Enviai agora sobre este eIeito a força que de Vós procede, o Espírito soberano, que destes ao vosso amado Filho Jesus Cristo, e Ele transmitiu aos santos Apóstolos que fundaram a Igreja por toda a parte, como vosso templo, para glória e perene louvor do vosso nome."[3]

RITO BIZANTINO
A Graça Divina, que sempre cura o que é débil e completa o que está ausente, promova o presbítero N. (nome do ordenando), amado de Deus, ao Episcopado. Oremos por ele para que a graça do Santíssimo Espírito venha sobre ele.[4]

A imposição das mãos, na forma normativa do rito romano, deve ser realizada com contato físico entre a mão do ordenante e a cabeça do ordenando, mas tal contato físico não é imprescindível para a validade (necessário somente à licitude do sacramento), como definiu S. S. o Papa Pio XII:

"A fim de que não haja ocasião de dúvida, ordenamos que, ao conferir-se qualquer ordem, seja feita a imposição das mãos fisicamente tocando a cabeça do ordenando, embora seja suficiente um contato moral para validamente conferir o sacramento."[5] (tradução nossa do original latino)

Ademais da matéria e forma, para que o sacramento seja validamente conferido é também necessário que seja administrado por um ministro validamente ordenado e detentor da plenitude do sacramento da Ordem (bispo), e que tal ministro possua a intenção de fazer o que a Igreja faz ao ordenar alguém.
É necessário que o ministro celebrante do sacramento detenha a plenitude do sacramento da ordem, isto é, o episcopado, recebido validamente por meio de linhagem episcopal que remonte aos Apóstolos (sucessão apostólica), como ensina o Concílio de Trento (Sessão XXIII):
"Por conseguinte, o santo Sínodo declara que, além dos demais graus eclesiásticos, pertencem a essa ordem hierárquica principalmente os bispos, que sucederam no lugar dos Apóstolos, e, postos (como diz o mesmo Apóstolo) pelo Espírito Santo, "regem a Igreja de Deus" [At 20,28]; e que eles são superiores aos presbíteros, podendo conferir o sacramento da confirmação, ordenar ministros da Igreja e executar muitas outras coisas, para as quais os demais, de ordem inferior, não têm nenhum poder [cân. 7]. [...]
Cân. 7. Se alguém disser que os bispos não são superiores aos presbíteros, ou que não têm o poder de confirmar e ordenar, ou que o que eles têm lhes é comum com os presbíteros, ou que as ordens conferidas por eles sem o consenso ou chamado do povo ou do poder secular são nulas; ou que os que nem são devidamente ordenados pelo poder eclesiástico e canônico, nem mandatados, mas vêm de outra parte, são legítimos ministros da Palavra e dos sacramentos; seja anátema."[6]

No mesmo sentido Adolphe Tanquerey, o qual inclusive adverte que a condição de cismático ou herege do bispo ordenante não impede que este confira validamente a outrem o sacramento da ordem em quaisquer de seus graus (episcopado, presbiterado e diaconado):
"Desde o início, apenas dos bispos, sucedendo aos Apóstolos, diz-se que administram este sacramento [da ordem] e em nenhum lugar se lê que, mesmo no tempo da perseguição - quando a necessidade requeria demandas especiais -, simples presbíteros ordenaram outros presbíteros.
Os Padres da Igreja oferecem provas que confirmam isto; por exemplo, São Jerônimo [Epístola 146, ad Evang. P.L., XXII, 1192]: 'O que é que o bispo realiza que o presbítero não executa, com exceção da ordenação?' Os Concílios corroboram nossa visão: Niceia I, cânone 4 e Antioquia, cânone 13.
Consequentemente, inferimos que, em razão de sua ordenação episcopal, e sem a permissão de quem quer que seja, um bispo, mesmo se for herege ou cismático, ou tenha sofrido alguma censura, tem o poder de conferir validamente todas as ordens."[7] (tradução nossa do inglês)

Em relação à intenção requerida do ministro celebrante, são interessantes os esclarecimentos formulados pelo teólogo alemão Ludwig Ott:
"Qualidade da intenção:
Com relação à faceta subjetiva, o ideal é a intenção atual, ou seja, aquela intenção da vontade que precede e acompanha toda a cerimônia; mas notemos que tal intenção não é necessária. Basta a intenção virtual, ou seja, aquela que se concebe antes da cerimônia e durante o curso desta permanece virtualmente (SANTO TOMÁS a chama intenção habitual). [...]
Com relação à faceta objetiva, basta a intenção de fazer o que a Igreja faz. Portanto, não é necessário que o ministro tenha a intenção de buscar os efeitos do sacramento que a Igreja busca, por exemplo, a remissão dos pecados. Tampouco é necessário que tenha intenção de realizar um rito especificamente católico. Basta o propósito de realizar uma cerimônia religiosa comum entre os cristãos."[8] (tradução nossa do espanhol)

Ou também como define Felix Cappello, em seu conhecido Tratado Canônico-Moral dos Sacramentos:
"para a validade do sacramento, não é necessária denominada expressa ou determinada, bastando a intenção somente genérica de minimamente fazer o que a Igreja faz, ou de fazer aquilo que Cristo instituiu, ou aquilo que fazem os cristãos".[9] (tradução nossa do latim)

Portanto, fica claro que a posição mais abalizada na Teologia Sacramental é a de que um bispo validamente ordenado, ainda que herege ou cismático, pode conferir válida, embora ilicitamente, o sacramento da Ordem, em seus três graus (diaconado, presbiterado e episcopado), desde que queira conferir o sacramento celebrado com a mínima intenção de realizar o que a Igreja faz, ainda que tenha uma visão distorcida sobre aquilo que a Igreja faz ao celebrar um determinado sacramento.[10]
Esta intenção interna, quando acompanhada da intenção externalizada no rito devido (com matéria e forma adequadas), é presumidamente suficiente, uma vez que a Igreja não é capaz de julgar a real intenção no foro interno (a intenção interna negativa somente é conhecida se o celebrante a manifestar exteriormente). Este o ensinamento de S. S. o Papa Leão XIII na Bula Apostolicae Curae, promulgada em 15/09/1896:
"A Igreja não julga sobre a mente e a intenção, na medida em que é algo que, por sua natureza, é interno; mas na medida em que a intenção se manifesta externamente, a Igreja é obrigada a julgá-la. Uma pessoa que tenha correta e seriamente usado a matéria e a forma necessárias para efetuar e conferir um sacramento, por este mesmo fato, presume-se que tenha a intenção de fazer o que a Igreja faz."[11] (tradução nossa)

Uma vez validamente recebido, o sacramento da Ordem imprime caráter de forma indelével, de modo que não pode ser repetido, sob pena de incorrer-se em pecado de sacrilégio. A este respeito, Adolphe Tanquerey:
"Este poder é tão indelevelmente inerente à alma do ordenado que aquele que o recebeu não pode tornar-se um leigo novamente e a ordenação devidamente recebida não pode ser repetida. Leão XIII disse: 'Sempre se manteve firme e inalterável que o sacramento da Ordem não pode ser repetido'. Se é verdade que muitas ordenações, especialmente a partir do século IX ao XII, foram repetidas, isso resultou do fato de que as ordenações recebidas por hereges ou simoníacos eram consideradas por muitos como inválidas: esse erro, distante do ensinamento dos mais notáveis Padres da Igreja (por exemplo, São Jerônimo, Santo Agostinho. São Leão I), foi derrubado por Pedro Damião, e Santo Tomás e São Boaventura puseram completamente fim a tal erro: a partir deste momento, o verdadeiro ensinamento, que já foi explicado, tem prevalecido".[12] (tradução nossa)

Em caso de eventual regularização de situação canônica para exercício de ministério perante a Igreja Católica Apostólica Romana, é recomendável que não se proceda novamente à ordenação simpliciter. Caso persistam dúvidas sobre a validade da ordenação, deve-se admitir uma reordenação sub conditione, de modo a evitar o risco de sacrilégio, nos termos do cânone 845 do Código de Direito Canônico:
"Cân. 845 - § 1. Os sacramentos do batismo, confirmação e ordem, uma vez que imprimem caráter, não se podem repetir.
§ 2. Se, depois de feita diligente investigação, permanecer ainda a dúvida prudente se os sacramentos referidos no § 1 foram de fato conferidos, ou se o foram validamente, administrem-se sob condição."

(Continua em próximo post)


[1] "Quae cum ita sint, divino lumine invocato, suprema Nostra Apostolica Auctoritate et certa scientia declaramus et, quatenus opus sit, decernimus et disponimus: Sacrorum Ordinum Diaconatus, Presbyteratus et Episcopatus materiam eamque unam esse manuum impositionem; formam vero itemque unam esse verba applicationem huius materiae determinantia, quibus univoce significantur effectus sacramentales, — scilicet potestas Ordinis et gratia Spiritus Sancti, — quaeque ab Ecclesia qua talia accipiuntur et usurpantur." PIUS PP. XII. Sacramentum Ordinis. Acta Apostolicae Sedis, vol. XL, (1948), n. 4, pp. 5-7.
[2] "Comple in sacerdóte tuo ministérii tui summam, et ornaméntis totíus glorificatiónes instrúctum, coeléstibus unguénti rore santífica." A tradução para a língua portuguesa aqui utilizada foi extraída de PENIDO, Maurílio Teixeira-Leite. Iniciação Teológica: o mistério dos sacramentos. Vol. II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1961. p. 429.
[3] "et nunc effunde super hunc electum eam virtutem, quæ a te est, Spiritum principalem, quem dedisti dilecto Filio Tuo Jesu Christo, quem ipse donavit sanctis apostolis, qui constituerunt ecclesiam per singula loca, ut sanctuarium tuum, in gloriam et laudem indificientem nominis tui." A tradução aqui utilizada foi extraída da versão oficial do Pontifical Romano em língua portuguesa aprovada para Portugal. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA. Pontifical Romano: ordenação do bispo, dos presbíteros e diáconos. 3. ed.
[4] BRADSHAW, Paul F. Ordination Rites of the Ancient Churches of East and West. New York: Pueblo Publishing Company, 1990. p. 133. Tradução nossa do texto em inglês.
[5] "Ne vero dubitandi praebeatur occasio, praecipimus ut impositio manuum in quolibet Ordine conferendo caput Ordinandi physice tangendo fiat, quamvis etiam tactus moralis ad Sacramentum valide conficiendum sufficiat." PIUS PP. XII. Sacramentum Ordinis. Acta Apostolicae Sedis, vol. XL, (1948), n. 6, pp. 5-7.
[6] DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. Trad. José Marino e Johan Konings. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007. p. 452-454 [n. 1768 e n. 1777].
[7] TANQUEREY, Adolphe. A Manual of Dogmatic Theology. Transl. John Byrnes. New York: Desclee, 1959. p. 362-363.
[8] OTT, Ludwig. Manual de Teología Dogmática. Trad. Constantino Ruiz Garrido. Barcelona: Herder, 1966. p. 511.
[9] CAPPELLO, Felix M. Tractatus Canonico-Moralis De Sacramentis. Vol. I. Editio Sexta. Romae; Taurini: Marietti, 1953. p. 38-39.
[10] No sentido de que a intenção de fazer o que a Igreja faz não depende do fato de o celebrante estar em comunhão com a Igreja Católica Romana nem do fato de que este tenha uma reta noção da fé, cf. também: PRÜMMER, Dominicus. Manuale Theologiae Moralis. Tomus III. 12. ed. Friburgi Brisgoviae: Herder, 1955. p. 57; WOUTERS, Ludovico. Manuale Theologiae Moralis. Tomus II. Brugis: Carolus Beyaert, 1933. p. 12; NOLDIN, H.; SCHMITT, A. Summa Theologiae Moralis. V. III: De Sacramentis. Oeniponte: Feliciani Rauch, 1960. 32 ed. p. 16.
[11] LEO XIII. Apostolicae Curae. n. 33. Disponível: http://www.papalencyclicals.net/Leo13/l13curae.htm (inglês).
[12] TANQUEREY, Adolphe. A Manual of Dogmatic Theology. V. 2. Trad. por John Byrnes. New York: Desclee, 1959. p. 359-360.

terça-feira, 22 de julho de 2014

PODE O FIEL AUTORIZAR O SACERDOTE A REVELAR O TEOR DE SUA CONFISSÃO? (II)

Como visto no post anterior sobre o tema, há um interesse da menina abusada de que o sacerdote confirme os fatos que dela ouviu na confissão alguns anos atrás. Veja que o padre não foi testemunha ocular dos abusos - apenas a menina e seus pais pedem que ele confirme que a menina, em confissão, narrou os abusos cometidos por terceiro.

Caberá ao tribunal então valorar este possível depoimento do sacerdote como entender devido. Poderá ser entendido, por exemplo, como uma prova que corrobore as outras provas sobre o abuso, pois, em geral, um católico quando vai ao confessionário está com o espírito desarmado e tende a narrar ao sacerdote apenas fatos verdadeiros que com ele aconteceram. Pode ser, ao revés, que o tribunal entenda que isto nada prova, pois o sacerdote não testemunhou nada, apenas ouviu a versão dos fatos que a menina lhe contou. Ou seja, o valor desta prova para o deslinde da causa dependerá dos julgadores.

É inequívoco, contudo, que se o próprio fiel desobrigou o sacerdote do sigilo, e deseja inclusive que o sacerdote torne público o conteúdo de sua confissão, não há problema algum nisto.

Mas alguém dirá: e o sigilo do acusado, do eventual abusador?

Voltemos ao conceito básico: o sigilo é uma garantia do fiel que se confessa, não de terceiros que foram acusados em confissão. O sacerdote, neste caso, não poderia relatar a situação à polícia não em razão de proteger o suposto abusador, mas sim em virtude do sigilo sacramental da vítima, que poderia não ter interesse em ver esta situação vinda a público. É um direito da suposta vítima que aquilo que foi dito em confissão jamais será revelado. O padre não poderia informar nada a ninguém enquanto a penitente não lhe desse autorização para tanto, de modo que é injusto que ele responda por perdas e danos por algo que não estava autorizado a fazer nos termos da lei canônica. Sem a autorização da menina - que só foi dada anos depois, no tribunal -, o padre não poderia comentar com ninguém o que ouvira em confissão. Agora, no tribunal, já pode, pois foi autorizado pela penitente.

A situação seria diferente se o suposto abusador viesse se confessar com o sacerdote e admitisse que abusou da menina. Neste caso, o sacerdote está obrigado a preservar o sigilo do penitente abusador, e não poderá dizer que este confessou o abuso, mesmo que para isso o sacerdote tenha de enfrentar a prisão.
Então, o sacerdote do nosso caso pode narrar os fatos da confissão feita pela menina, vez que esta já o autorizou a tornar públicas tais confissões. Como disse, aquilo que a menina confessou é apenas a sua versão dos fatos narrada ao sacerdote - não é prova cabal dos abusos.

Por outro lado, fazendo um exercício de raciocínio, pode ser que o sacerdote e a diocese não tenham se equivocado quanto a esta questão, mas que tenham deliberadamente distorcido a doutrina do "sigilo sacramental", mesmo sabendo que ela não se aplicava depois que a penitente autorizou sua revelação, para não serem considerados responsáveis por não informar as autoridades civis.

Esta a consequência de uma lei civil que não respeita a consciência dos ministros religiosos e dos fiéis - levá-los a dizer "verdades pela metade" (no caso, não expor a doutrina do sigilo sacramental em sua inteireza, mas apenas em parte). O sigilo sacramental deve ser guardado a todo custo, menos se o penitente desobrigar o padre. É esta última condição (a autorização do fiel) que o padre e a diocese se "esqueceram" de informar ao tribunal (ou, provavelmente, preferiram não informar, querendo induzir o tribunal a erro de que o sigilo sacramental era absoluto mesmo quando o penitente desobrigava o padre - o que é falso).

A afirmação do sacerdote e da diocese de que o sigilo sacramental é absoluto mesmo contra a autorização do penitente não encontra suporte na esmagadora maioria das opiniões abalizadas sobre o tema, desde S. Tomás de Aquino e S. Boaventura até os dias atuais, como provei acima ao citar 20 autores diferentes que consegui consultar diretamente.

Ora, basta o tribunal civil respeitar o fato de que aquilo que foi dito em confissão não pode ser revelado sem autorização do penitente para se ter claro que nem o padre, nem a diocese poderiam informar qualquer coisa a quem quer que fosse à época em que os fatos ocorreram. Sem o consentimento do penitente, inexistente à época, o padre não pode contar a ninguém - nem mesmo a seu superior eclesiástico.

Como o tribunal parece não comungar deste entendimento (no que está errado), para os magistrados, independentemente da vontade da menina à época (em que possuía apenas 14 anos), o padre teria que informar a polícia o que ouviu em confissão, e seria responsável junto com a diocese por pagar indenização em razão de não ter informado. É a velha história do Estado que não quer respeitar as leis canônicas, por entender, na prática, que ele é uma espécie de "Deus deste mundo" capaz de dominar completamente a vida e a consciência das pessoas - o que é falso. Há uma dimensão religiosa de contato do ser humano com Deus que nem mesmo o Estado pode ousar tocar. E o desrespeito ao sacramento da confissão por parte do Estado é isto - uma grave violação da liberdade religiosa dos cidadãos católicos (no caso dos EUA, também uma grave violação da separação entre Igreja e Estado, a chamada Establishment Clause da Primeira Emenda à Constituição).

A questão é tão séria que S. Tomás e S. Afonso de Ligório afirmam com todas as letras que, se um padre for instado a falar sobre uma confissão quando está obrigado pelo sigilo, pode, sob juramento, afirmar que nada ouviu ou nada sabe. Ora, estariam os dois santos incitando o padre a mentir? De forma alguma. S. Tomás afirma com propriedade (Questão 11 - Artigo 1. Suplemento da Suma Teológica) que o padre, ao ouvir a confissão, age no lugar de Deus, como gestor das coisas divinas. O que vem a conhecer pela confissão o faz in persona Christi, e não como mero homem. Assim, quando jura que falará a verdade e afirma que nada sabe de uma confissão, não está a mentir: jura como homem, e, enquanto mero homem, de fato o padre não pode ouvir confissão alguma nem recebe este conhecimento a partir de um ofício humano. Portanto, como homem que depõe no tribunal, o padre nada sabe, pois não foi enquanto mero homem que ele ouviu a confissão.

Cogito ainda uma outra teoria, que daria contornos heroicos à atuação do padre (embora eu creia que a explicação acima, de distorção do sigilo sacramental para livrar-se de uma injusta condenação, seja mais plausível). O problema aqui pode ser outro: tanto a suposta vítima como o suposto abusador eram da mesma paróquia. Portanto, é possível que o suposto abusador tenha se confessado com o mesmo sacerdote e, quiçá, tenha confessado o crime ao clérigo. Neste caso, o padre não pode sequer mencionar que o suposto abusador se aproximou dele, pois aí estaria a violar o sigilo sacramental do abusador.

Para evitar isto, lança uma cortina de fumaça sobre o pedido da menina, como se não soubesse que estaria autorizado a falar sobre a confissão dela. Faz-se de "bobo" sem o ser. Na verdade, ele sabe que a menina pode autorizar a publicação da confissão dela - o que ele quer evitar é, na verdade, ser colocado em uma situação em que se possa insinuar que o suposto abusador também se aproximou dele para confessar.

Imaginem a cena: na sala de audiência do tribunal, o padre começa a falar da confissão da menina, pois ela o autorizou a tanto. Vocês realmente acham que o advogado da menina ficará só aí ou tentará provocar o padre para extrair alguma informação sobre eventual confissão do suposto abusador? O sistema americano de inquirição de testemunhas é aquele em que o advogado formula questões diretamente à testemunha. Agora, se o padre se recusar a responder qualquer coisa sobre o possível abusador, como isto soará? Se o advogado perguntar: "o acusado se aproximou de você para confessar?" E o padre responder: "não estou autorizado a responder isso", como isto soará? No mínimo, que o padre quer proteger o eventual abusador. Ora, se quer proteger é por que é provável que o abusador tenha se confessado com ele e, mais ainda, é possível que esta confissão tenha algo de podre.

Portanto, se o padre continuar a bater o pé de nada falar e resolver ser preso por isso, terá meu respeito, por qualquer uma das razões acima: seja por mostrar que exigir dele que informasse o conteúdo de uma confissão sem autorização do penitente é um grave atentado contra sua consciência e sua liberdade como ministro religioso, seja por querer proteger um outro penitente que com ele também teria se confessado - o possível abusador.

Simplesmente não creio que ele sofreria consequências tão drásticas (ser preso) por mera ignorância do direito canônico ou da teologia - há excelentes canonistas e teólogos na América do Norte prontos para avisá-lo da possibilidade de falar de uma confissão autorizada pela penitente.

Há mais nesta história do que a simples ignorância do padre e da diocese - ambos devem saber que o sigilo sacramental não se aplica quando a penitente autorizou que se fale sobre a confissão dela. Agora é aguardar para ver como terminará este verdadeiro imbroglio - mais um vindo da Igreja Americana, já tão combalida pelo escândalo dos padres pedófilos.


PODE O FIEL AUTORIZAR O SACERDOTE A REVELAR O TEOR DE SUA CONFISSÃO? (I)

Como sempre faço, respondo desde agora a pergunta: sim, o fiel pode autorizar o sacerdote a revelar o teor de sua confissão.

O caso que analisamos hoje é incomum (obviamente, é também trágico, pois se trata de suposto abuso sexual de um menor por um leigo dentro do ambiente da Igreja): uma menina norte-americana do Estado de Louisiana, aos 14 anos de idade, confessa a um sacerdote que estava sofrendo abuso sexual de um membro da paróquia agora já falecido. A menina, representada por seus pais, vai ao Judiciário buscar indenização civil pelo abuso sofrido, tanto contra o espólio do suposto abusador, como também contra o sacerdote (por negligência deste no dever de relatar os fatos à autoridade estatal competente) e contra a diocese (responsabilidade desta por ato de seu preposto, a saber, o padre, que deixou de informar a autoridade civil).

Neste momento, o sacerdote é chamado a dar o seu depoimento para confirmar que a menina de fato confessou-se com ele á época e que o teor de tal confissão versava sobre abuso sexual sofrido pela menina por parte de um membro da paróquia.

O sacerdote, então, alega que não está autorizado pelo direito canônico a confirmar se a menina confessou e nem o teor desta confissão, uma vez que o sigilo da confissão o impede, sob pena de ser excomungado automaticamente (excomunhão latae sententiae prevista no cân. 1388, 1). A diocese afirma o mesmo.

O tribunal assevera que o sacerdote poderia depor sobre os fatos ocorridos durante a confissão, uma vez que a protegida pelo sigilo, que era a menina, já o autorizou a fazê-lo. Contudo, se não depusesse e preferisse ficar calado, poderia incorrer no que o direito norte-americano chama de contempt of court, ou seja, a possibilidade de ser preso por ofender a dignidade da Corte ao não cumprir ordem judicial. No direito americano, somente o réu em processo criminal pode ficar calado – o réu em processo civil (é o caso do padre) deve depor e obriga-se a dizer a verdade, sob juramento (se mentir, poderá cometer o crime de perjúrio).

Em primeiro lugar, deve-se louvar o zelo de sacerdotes que demonstrem sua disposição para serem presos caso sejam obrigados a violar o sigilo sacramental. Realmente, se os sacerdotes não tivessem este ânimo de sofrer atrozes penas para não trair sua missão, a confissão como sacramento rapidamente cairia em descrédito, pois quem contaria seus pecados a um homem que, embora sendo instrumento de Deus, estivesse disposto a publicá-los aos quatro ventos no dia seguinte?

Por isso mesmo a Igreja pune com sua pena mais severa (a excomunhão, e na modalidade latae sententiae ou automática) o sacerdote que viola tal segredo, sendo o levantamento de tal excomunhão reservado à Sé Apostólica. Ou seja, grau máximo de severidade no tratamento da questão. Em tempos idos, como atesta o IV Concílio do Latrão (1215), o sacerdote que revelasse o segredo de confissão não somente seria suspenso do exercício das sagradas ordens, como seria compulsoriamente recolhido a um mosteiro de clausura para fazer penitência perpétua. Duro, mas indica a importância que a Igreja dava e dá ao sigilo sacramental.

O sigilo sacramental é uma garantia em favor do fiel penitente, ou seja, de que tudo que o fiel narrou na confissão não será revelado sob hipótese alguma. Porém, quando o próprio fiel autoriza o sacerdote a divulgar o conteúdo da confissão, é o próprio fiel a permitir que a história do que se passou no confessionário venha a público.

Neste sentido é a lição da Suma Teológica sobre o tema, no Suplemento post mortem elaborado a partir dos Comentários de S. Tomás de Aquino ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Scriptum Super Quarto Libro Sententiarum, Distinctio XXI, Quaestio III, Art. II et III[1]). Por ser mais acessível o texto da Suma Teológica, passo a citá-lo:

"Questão 11 - Artigo 4.
Art. 4 ─ Se com licença do penitente pode o sacerdote revelar a outrem o pecado ouvido sob o sigilo da confissão.

O quarto discute-se assim. ─ Parece que com licença do penitente não pode o sacerdote revelar a outrem o ouvido sob o sigilo da confissão.

1. ─ Pois, o que não pode o superior não pede o inferior. Ora, o Papa a ninguém poderá dar licença de revelar a outrem o pecado ouvido em confissão. Logo, nem o penitente poderia dar essa licença.
2. Demais. ─ O instituído em vista do bem comum não pode ser mudado por arbítrio de um particular. Ora, o sigilo da confissão foi instituído para o bem de toda a Igreja,a fim de que os homens se acerquem da confissão com mais confiança. Logo, o penitente não pode dar ao sacerdote licença para revelar a sua confissão.
3. Demais. ─ Se ao sacerdote pudesse ser dada essa licença, seria dada aos maus sacerdotes para encobrir a malícia, pois poderiam alegar que licença lhes foi dada, para assim pecarem impunemente. O que é inadmissível. E portanto, parece que não podem ter tal licença do penitente.
4. Demais. ─ Quem recebesse a revelação dessa confissão não estaria obrigado ao segredo. E assim poderia tornar público um pecado já perdoado. O que é inadmissível. Logo, não pode o sacerdote receber essa licença.

Mas, em contrário. ─ Com o consentimento do penitente, o superior pode mandar um pecador a um sacerdote inferior, levando-lhe carta. Logo, por vontade do penitente pode o pecado ser revelado a outrem.

2. Demais. ─ Quem pode agir por si também o pode por outrem. Ora, o penitente pode revelar o seu pecado, que por si cometeu, a outrem. Logo, também o pode fazer pelo sacerdote.

SOLUÇÃO. ─ Duas são as razões por que está o sacerdote obrigado ao sigilo: primeiro e principalmente, porque essa ocultação é da essência do sacramento, pois, o sacerdote conhece os pecados como Deus, cujas vezes faz na confissão; segundo, para evitar escândalo. Mas, o penitente pode fazer o sacerdote conhecer também como homem o que só como Deus o sabia; e isso, dando-lhe licença de revelar a confissão. Contudo, o sacerdote deve, ao revelar, evitar o escândalo de ser tido como infrator do sigilo da confissão.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. ─ O Papa não pode dar ao sacerdote licença de revelar a confissão, porque não pode fazê-lo conhecedor dela como homem. Mas isso o pode o penitente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ No caso não fica eliminado o instituído para o bem comum, pois não há quebra do sigilo da confissão quando se diz o que de outro modo foi sabido.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Por aí não se confere impunidade aos maus sacerdotes, pois lhes incumbe provar, se acusados, que revelaram por licença do penitente.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Quem chega ao conhecimento do pecado, mediante o sacerdote e por vontade do penitente, participa de algum modo do ato do sacerdote. Por isso se dá com ele o mesmo que com o intérprete; salvo se o pecador quiser que absoluta e livremente saiba da confissão."

Todas as 20 obras por mim consultadas admitem que o penitente autorize o confessor a falar, seguindo a lição do Aquinate - o penitente pode liberar o confessor do sigilo sacramental, desde que o penitente o faça de modo expresso para evitar qualquer aparência escandalosa de que o sacerdote estaria a revelar um segredo de confissão. Assim é em: S. Boaventura[2], Capreolus[3], Bañez[4], Salmanticenses[5], Billuart[6], S. Afonso de Ligório[7], Konings[8], Marc e Gestermann[9], Merkelbach[10], Noldin-Schmitt[11], Peeters[12], Prümmer[13], Regatillo[14], Tanquerey[15], Vermeersch[16], Wouters[17], Bucceroni[18], Aertnys e Damen[19] e Davis[20].

[Continua em próximo post]




[1] Scriptum super sententiis Magistri Petri Lombardi. Parisiis: P. Lethielleux, 1947. p. 1.071-1.075.
[2] S. Bonaventurae. Opera Omnia - Commentaria in Quatuor Libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi: In Quartum Librum Sententiarum. T. IV. Florença: Quaracchi, 1889. p. 568. Eis a conclusão de S. Boaventura: "Conclusio: Confitens potest licentiare confessarium, ut peccata revelet, in casu, in quo non timetur scandalum."
[3] CAPREOLI, Johannis. Defensiones Theologiae Divi Thomae Aquinatis. Tomus VI. Turonibus: Alfred Cattier, 1906. p. 425: "Quarta conclusio est quod sacerdos de voluntate confitentis potest revelare peccatum sibi confessum." Ex quibus potest sit argui: Cessante causa, cessat effectus. Sed confitens dans licentiam sacerdoti revelandi suam confessionem, tollit causam celationis. Ergo et effectum."
[4] BAÑEZ, Domingo. Comentarios ineditos a la tercera parte de Santo Tomas. De Sacramentis. Tomo II. Segunda parte. Madrid: Biblioteca de Teólogos Españoles, 1953. p. 757: "Utrum sacerdos possit revelare confessionem de licentia poenitentis? Conclusio est affirmativa. Ratio est quia quando homo qui confessus est concedit talem facultatem, jam facit ut confessor sciat talem secretum ut homo et non solum loco Dei."
[5] Cursus Theologicus, n. 58. Tomus Vigesimus. Parisiis: Victor Palmé, 1883. p. 550 e ss.
[6] BILLUART, Caroli Renati. Summa Sancti Thomae hodiernis academiarum moribus accomodata sive Cursus Theologiae juxta mentem Divi Thomae. Tomus IX. Parisiis: Victorem Lecoffre, 1886. 448-450.
[7] LIGORIO, Alphonsi Mariae de. Theologia Moralis. Tomus Tertius. Graz: Akademische Druck U., 1954. n. 651. p. 672-673.
[8] KONINGS, A. Theologia Moralis. V. II. 7 ed. Nova Iorque: Benziger Fratres, 1890. n. 1489, IV. p. 189.
[9] MARC, Cl.; GESTERMANN, X. Institutiones Morales Alphonsianae. Tomus Secundus. 19. ed. Lutetiae Parisiorum: Emmanuelis Vitte, 1934. n. 1866, 7º. p. 401.
[10] MERKELBACH, Benedictus Henricus. Summa Theologiae Moralis. T. III: De Sacramentis. 11 ed. Brugis: Desclée de Brouwer, 1962. n. 622. p. 584.
[11] NOLDIN, H.; SCHMITT, A. Summa Theologiae Moralis. V. III: De Sacramentis. Oeniponte: Feliciani Rauch, 1960. 32 ed. n. 409. p. 351-352.
[12] PEETERS, Hermes. Manuale Theologiae Moralis. V. III: Pars Sacramentaria. Roma: Marietti, 1963. p. 166.
[13] PRÜMMER, Dominicus. Manuale Theologiae Moralis. Tomus III. 12. ed. Friburgi Brisgoviae: Herder, 1955. p. 317.
[14] REGATILLO, Eduardo. Theologiae Moralis Summa. V. III. Matriti: BAC, 1954. n. 492. p. 365-366.
[15] TANQUEREY, A. Synopsis Theologiae Moralis et Pastoralis. Tomus Primus: De Paenitentia, De Matrimonio et Ordine. 7. ed. Romae: Desclée, 1920. n. 500. p. 300.
[16] VERMEERSCH, Arthurus. Theologiae Moralis: principia, responsa, consilia. Tomus III. De personis, de sacramentis, de Ecclesiae praeceptis et censuris. Romae: Charles Beyaert, 1923. n. 513, p. 413-414.
[17] WOUTERS, Ludovico. Manuale Theologiae Moralis. Tomus II. Brugis: Carolus Beyaert, 1933. n. 433. p. 339.
[18] BUCCERONI, Ianuario. Institutiones Theologiae Moralis. V. III. 6. ed. Romae: Typographia Pontificia in Instituto Pii IX, 1915. n. 843. p. 533-534.
[19] AERTNYS, I.; DAMEN, C. Theologia Moralis. Tomus II. 17. ed. Romae: Marietti, 1958. p. 412-414.
[20] DAVIS, Henry. Moral and Pastoral Theology. V. 3. 8. ed. London, New York: Sheed and Ward, 1959. p. 318.