Um bispo que possua sucessão apostólica, mas que não esteja em comunhão com a Sé Romana, pode
ordenar outros homens validamente?
A resposta, em regra,
é SIM.
Para responder à consulta
de um amigo, tive recentemente de entrar em um terreno extremamente mal
compreendido sobre como a Igreja Católica Apostólica Romana encara a
administração do sacramento da Ordem por bispos que não estejam em plena
comunhão com a Sé Romana, mas que apresentem linhagem ou sucessão apostólica. A
resposta não é simples, mas pretendo tentar explicar como
tradicionalmente é vista a questão da validade das ordenações realizadas por
outras Igrejas que estejam fora da comunhão romana. Adianto desde já que é
possível sim, dadas algumas condições, haver homens validamente ordenados em
outras Igrejas que não estão em comunhão com a Igreja Católica Romana. Em relação às Igrejas Ortodoxas, jamais houve dúvidas disso. Contudo, a situação é mais nebulosa quanto a outros grupos, razão pela qual passo a explanar o que segue.
Segundo a Teologia
católica romana, são dois os elementos necessários para a válida administração
do sacramento da Ordem: 1) matéria
devida; 2) forma adequada.
Quanto à matéria e forma devidas para o sacramento da
Ordem, estas encontram-se na imposição das mãos do celebrante sobre o homem que
está sendo ordenado (matéria)
juntamente com as palavras que significam o efeito sacramental de constituir um
ministro sagrado (forma), como define
S. S. o Papa Pio XII na Encíclica Sacramentum
Ordinis, n. 4:
"Portanto,
invocada a luz divina, por Nossa Suprema Autoridade Apostólica e por meio de uma
ciência certa, declaramos, e, quanto necessário, decretamos e prescrevemos: que
a única matéria das Sagradas Ordens do Diaconado, Presbiterado e Episcopado é a
imposição das mãos; e que a única forma são as palavras cuja aplicação determina
a matéria, que univocamente significam os efeitos sacramentais – a saber, o
poder da Ordem e a graça do Espírito Santo – e que são aceitas e usadas pela
Igreja neste sentido."[1] (tradução nossa do
original latino)
A forma adequada relaciona-se às palavras que devem ser
proferidas como fórmula sacramental. Pode haver variação nestas palavras, desde
que transmitam minimamente o significado de que se trata da ordenação, pela graça do Espírito Santo, de um ministro
sagrado para o exercício dos poderes inerentes a tal ministério (celebrar os
sacramentos, dentre os quais desponta a Eucaristia).
De fato, ademais da variação própria da fórmula para os
distintos graus do sacramento da Ordem (diácono, presbítero e bispo), entre os
diversos ritos litúrgicos há variação na fórmula utilizada para o mesmo grau do
sacramento, sem que isto afete a validade do mesmo, desde que preservado o
significado mínimo acima indicado. O próprio ritual romano atual apresenta
fórmula distinta daquela utilizada antes da reforma litúrgica levada a cabo por
S. S. o Papa Paulo VI após o Concílio do Vaticano II. Vejamos algumas destas
fórmulas de ordenação para o grau de bispo:
FORMA
EXTRAORDINÁRIA DO RITO ROMANO
(Forma
essencial contida no livro litúrgico Pontificale
Romanum, conforme determinação de S. S. o Papa Pio XII por meio da
Constituição Apostólica Sacramentum
Ordinis)
"Perfazei no vosso sacerdote a suma de vosso
ministério, e revestindo-o dos ornamentos de toda glória, santificai-o pelo
orvalho da celeste unção."[2]
FORMA
ORDINÁRIA DO RITO ROMANO
(Forma
essencial contida no livro litúrgico Pontificale
Romanum de 1968, promulgado por S. S. o Papa Paulo VI e revisto por ordem
de S. S. o Papa São João Paulo II)
"Enviai
agora sobre este eIeito a força que de Vós procede, o Espírito soberano, que
destes ao vosso amado Filho Jesus Cristo, e Ele transmitiu aos santos Apóstolos
que fundaram a Igreja por toda a parte, como vosso templo, para glória e perene
louvor do vosso nome."[3]
RITO
BIZANTINO
A
Graça Divina, que sempre cura o que é débil e completa o que está ausente,
promova o presbítero N. (nome do
ordenando), amado de Deus, ao Episcopado. Oremos por ele para que a graça do
Santíssimo Espírito venha sobre ele.[4]
A imposição das mãos, na forma normativa do rito romano,
deve ser realizada com contato físico
entre a mão do ordenante e a cabeça do ordenando, mas tal contato físico não é
imprescindível para a validade (necessário somente à licitude do sacramento),
como definiu S. S. o Papa Pio XII:
"A fim de que
não haja ocasião de dúvida, ordenamos que, ao conferir-se qualquer ordem, seja
feita a imposição das mãos fisicamente tocando a cabeça do ordenando, embora
seja suficiente um contato moral para validamente conferir o sacramento."[5] (tradução nossa do
original latino)
Ademais da matéria e forma, para que o sacramento seja validamente
conferido é também necessário que seja
administrado por um ministro validamente ordenado e detentor da plenitude do
sacramento da Ordem (bispo), e que tal ministro possua a intenção de fazer o
que a Igreja faz ao ordenar alguém.
É necessário que o ministro celebrante do sacramento
detenha a plenitude do sacramento da ordem, isto é, o episcopado, recebido
validamente por meio de linhagem episcopal que remonte aos Apóstolos (sucessão
apostólica), como ensina o Concílio de Trento (Sessão XXIII):
"Por conseguinte,
o santo Sínodo declara que, além dos demais graus eclesiásticos, pertencem a essa ordem hierárquica
principalmente os bispos, que sucederam no lugar dos Apóstolos, e, postos (como
diz o mesmo Apóstolo) pelo Espírito Santo, "regem a Igreja de Deus"
[At 20,28]; e que eles são superiores aos presbíteros, podendo conferir o
sacramento da confirmação, ordenar
ministros da Igreja e executar muitas outras coisas, para as quais os demais,
de ordem inferior, não têm nenhum poder [cân. 7]. [...]
Cân. 7. Se alguém disser
que os bispos não são superiores aos presbíteros, ou que não têm o poder de confirmar e ordenar, ou que o que eles têm lhes
é comum com os presbíteros, ou que as ordens conferidas por eles sem o
consenso ou chamado do povo ou do poder secular são nulas; ou que os que nem são
devidamente ordenados pelo poder eclesiástico e canônico, nem mandatados, mas vêm
de outra parte, são legítimos ministros da Palavra e dos sacramentos; seja anátema."[6]
No mesmo sentido Adolphe Tanquerey,
o qual inclusive adverte que a condição de cismático ou herege do bispo
ordenante não impede que este confira validamente a outrem o sacramento da
ordem em quaisquer de seus graus (episcopado, presbiterado e diaconado):
"Desde o início, apenas dos bispos, sucedendo aos Apóstolos,
diz-se que administram este sacramento [da ordem] e em nenhum lugar se lê que,
mesmo no tempo da perseguição - quando a necessidade requeria demandas
especiais -, simples presbíteros ordenaram outros presbíteros.
Os Padres da Igreja oferecem provas que confirmam isto; por
exemplo, São Jerônimo [Epístola 146, ad Evang. P.L., XXII, 1192]: 'O que
é que o bispo realiza que o presbítero não executa, com exceção da ordenação?'
Os Concílios corroboram nossa visão: Niceia I, cânone 4 e Antioquia,
cânone 13.
Consequentemente, inferimos
que, em razão de sua ordenação
episcopal, e sem a permissão de quem quer que seja, um bispo, mesmo se for
herege ou cismático, ou tenha sofrido alguma censura, tem o poder de conferir
validamente todas as ordens."[7] (tradução nossa do inglês)
Em relação à intenção requerida do ministro celebrante,
são interessantes os esclarecimentos formulados pelo teólogo alemão Ludwig Ott:
"Qualidade da intenção:
Com relação à faceta subjetiva, o ideal é a intenção atual,
ou seja, aquela intenção da vontade que precede e acompanha toda a cerimônia;
mas notemos que tal intenção não é necessária. Basta a intenção virtual, ou
seja, aquela que se concebe antes da cerimônia e durante o curso desta
permanece virtualmente (SANTO TOMÁS a chama intenção habitual). [...]
Com relação à faceta objetiva,
basta a intenção de fazer o que a Igreja faz. Portanto, não é necessário que o
ministro tenha a intenção de buscar os efeitos do sacramento que a Igreja
busca, por exemplo, a remissão dos pecados. Tampouco é necessário que tenha
intenção de realizar um rito especificamente católico. Basta o propósito de
realizar uma cerimônia religiosa comum entre os cristãos."[8] (tradução nossa do
espanhol)
Ou também como define Felix Cappello, em seu conhecido
Tratado Canônico-Moral dos Sacramentos:
"para a validade
do sacramento, não é necessária denominada expressa ou determinada, bastando a
intenção somente genérica de
minimamente fazer o que a Igreja faz, ou de fazer aquilo que Cristo instituiu, ou
aquilo que fazem os cristãos".[9] (tradução nossa do latim)
Portanto, fica claro que a posição mais abalizada na
Teologia Sacramental é a de que um bispo validamente ordenado, ainda que herege
ou cismático, pode conferir válida, embora ilicitamente, o sacramento da Ordem,
em seus três graus (diaconado, presbiterado e episcopado), desde que queira
conferir o sacramento celebrado com a mínima intenção de realizar o que a Igreja
faz, ainda que tenha uma visão distorcida sobre aquilo que a Igreja faz ao celebrar
um determinado sacramento.[10]
Esta intenção interna, quando acompanhada da intenção
externalizada no rito devido (com matéria e forma adequadas), é presumidamente
suficiente, uma vez que a Igreja não é capaz de julgar a real intenção no foro
interno (a intenção interna negativa somente é conhecida se o celebrante a
manifestar exteriormente). Este o ensinamento de S. S. o Papa Leão XIII na Bula
Apostolicae Curae, promulgada em
15/09/1896:
"A Igreja não
julga sobre a mente e a intenção, na medida em que é algo que, por sua
natureza, é interno; mas na medida em que a intenção se manifesta externamente,
a Igreja é obrigada a julgá-la. Uma pessoa que tenha correta e seriamente usado
a matéria e a forma necessárias para efetuar e conferir um sacramento, por este
mesmo fato, presume-se que tenha a intenção de fazer o que a Igreja faz."[11] (tradução nossa)
Uma vez validamente recebido, o sacramento da Ordem
imprime caráter de forma indelével, de modo que não pode ser repetido, sob pena
de incorrer-se em pecado de sacrilégio. A este respeito, Adolphe Tanquerey:
"Este poder é tão indelevelmente inerente à alma do
ordenado que aquele que o recebeu não pode tornar-se um leigo novamente e a ordenação
devidamente recebida não pode ser repetida. Leão XIII disse: 'Sempre se manteve
firme e inalterável que o sacramento da Ordem não pode ser repetido'. Se é verdade que muitas ordenações, especialmente a partir do século IX ao XII, foram repetidas, isso resultou do fato de que as ordenações recebidas por hereges ou simoníacos eram consideradas por muitos como inválidas: esse erro, distante do ensinamento dos mais notáveis Padres da Igreja (por exemplo, São Jerônimo, Santo Agostinho. São Leão I), foi derrubado por Pedro Damião, e Santo Tomás e São Boaventura puseram completamente fim a tal erro: a partir deste momento, o verdadeiro ensinamento, que já foi explicado, tem prevalecido".[12] (tradução nossa)
Em
caso de eventual regularização de situação canônica para exercício de
ministério perante a Igreja Católica Apostólica Romana, é recomendável que não
se proceda novamente à ordenação simpliciter. Caso persistam dúvidas sobre a validade da ordenação, deve-se
admitir uma reordenação sub conditione,
de modo a evitar o risco de sacrilégio, nos termos do cânone 845 do Código de
Direito Canônico:
"Cân. 845 - § 1. Os sacramentos do batismo, confirmação
e ordem, uma vez que imprimem caráter, não se podem repetir.
§ 2. Se, depois de
feita diligente investigação, permanecer ainda a dúvida prudente se os
sacramentos referidos no § 1 foram de fato conferidos, ou se o foram
validamente, administrem-se sob condição."
(Continua em próximo post)
[1]
"Quae cum ita sint, divino lumine invocato, suprema Nostra Apostolica Auctoritate
et certa scientia declaramus et, quatenus opus sit, decernimus et disponimus:
Sacrorum Ordinum Diaconatus, Presbyteratus et Episcopatus materiam eamque unam
esse manuum impositionem; formam vero itemque unam esse verba applicationem
huius materiae determinantia, quibus univoce significantur effectus
sacramentales, — scilicet potestas Ordinis et gratia Spiritus Sancti, — quaeque
ab Ecclesia qua talia accipiuntur et usurpantur." PIUS PP. XII. Sacramentum Ordinis. Acta Apostolicae
Sedis, vol. XL, (1948), n. 4, pp. 5-7.
[2]
"Comple in sacerdóte tuo
ministérii tui summam, et ornaméntis totíus glorificatiónes instrúctum,
coeléstibus unguénti rore santífica." A tradução para a língua
portuguesa aqui utilizada foi extraída de PENIDO, Maurílio Teixeira-Leite. Iniciação Teológica: o mistério dos
sacramentos. Vol. II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1961. p. 429.
[3]
"et nunc effunde super hunc
electum eam virtutem, quæ a te est, Spiritum principalem, quem dedisti dilecto
Filio Tuo Jesu Christo, quem ipse donavit sanctis apostolis, qui constituerunt
ecclesiam per singula loca, ut sanctuarium tuum, in gloriam et laudem
indificientem nominis tui." A tradução aqui utilizada foi extraída
da versão oficial do Pontifical Romano em língua portuguesa aprovada para
Portugal. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA. Pontifical
Romano: ordenação do bispo, dos presbíteros e diáconos. 3. ed.
[4] BRADSHAW, Paul F. Ordination
Rites of the Ancient Churches of East and West. New York: Pueblo Publishing Company, 1990. p. 133. Tradução nossa
do texto em inglês.
[5]
"Ne vero dubitandi praebeatur occasio, praecipimus ut impositio manuum in
quolibet Ordine conferendo caput Ordinandi physice tangendo fiat, quamvis etiam
tactus moralis ad Sacramentum valide conficiendum sufficiat." PIUS PP.
XII. Sacramentum Ordinis. Acta
Apostolicae Sedis, vol. XL, (1948), n. 6, pp. 5-7.
[6]
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos
símbolos, definições e declarações de fé e moral. Trad. José Marino e Johan
Konings. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007. p. 452-454 [n. 1768 e n. 1777].
[7] TANQUEREY, Adolphe. A Manual of Dogmatic Theology. Transl. John Byrnes. New York:
Desclee, 1959. p. 362-363.
[8] OTT, Ludwig. Manual de Teología Dogmática. Trad. Constantino Ruiz Garrido.
Barcelona: Herder, 1966. p. 511.
[9] CAPPELLO, Felix M. Tractatus
Canonico-Moralis De Sacramentis. Vol. I. Editio Sexta. Romae; Taurini:
Marietti, 1953. p. 38-39.
[10]
No sentido de que a intenção de fazer o que a Igreja faz não depende do fato de
o celebrante estar em comunhão com a Igreja Católica Romana nem do fato de que
este tenha uma reta noção da fé, cf. também: PRÜMMER, Dominicus. Manuale Theologiae Moralis. Tomus III. 12. ed. Friburgi
Brisgoviae: Herder, 1955. p. 57; WOUTERS, Ludovico. Manuale Theologiae
Moralis. Tomus II. Brugis: Carolus Beyaert, 1933. p. 12; NOLDIN, H.;
SCHMITT, A. Summa Theologiae Moralis. V. III: De
Sacramentis. Oeniponte: Feliciani Rauch, 1960. 32 ed. p. 16.
[11]
LEO XIII. Apostolicae Curae. n. 33.
Disponível: http://www.papalencyclicals.net/Leo13/l13curae.htm
(inglês).
[12] TANQUEREY, Adolphe. A Manual of
Dogmatic Theology. V. 2. Trad. por John Byrnes. New York: Desclee, 1959. p.
359-360.
Muito elucidativo, bom trabalho D. Bernardo.
ResponderExcluirEsclarecedor.Iniciou-se aí um tema que há muito tempo questiono.Vejo coerência e gostaria de aprofundar-me mais neste assunto,visto da polêmmica que causa entre os cristãos.Agradeço pela síntese do trabalho.
ResponderExcluirMuito bem colocado o assunto parabéns
ResponderExcluirQuem administra um sacramento de ordem
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