Como visto no post anterior sobre o tema, há
um interesse da menina abusada de que o sacerdote confirme os fatos que dela ouviu
na confissão alguns anos atrás. Veja que o padre não foi testemunha ocular dos
abusos - apenas a menina e seus pais pedem que ele confirme que a menina, em
confissão, narrou os abusos cometidos por terceiro.
Caberá ao tribunal então valorar este possível
depoimento do sacerdote como entender devido. Poderá ser entendido, por
exemplo, como uma prova que corrobore as outras provas sobre o abuso, pois, em
geral, um católico quando vai ao confessionário está com o espírito desarmado e
tende a narrar ao sacerdote apenas fatos verdadeiros que com ele aconteceram.
Pode ser, ao revés, que o tribunal entenda que isto nada prova, pois o
sacerdote não testemunhou nada, apenas ouviu a versão dos fatos que a menina lhe
contou. Ou seja, o valor desta prova para o deslinde da causa dependerá dos
julgadores.
É inequívoco, contudo, que se o próprio
fiel desobrigou o sacerdote do sigilo, e deseja inclusive que o sacerdote torne
público o conteúdo de sua confissão, não há problema algum nisto.
Mas alguém dirá: e o sigilo do acusado, do
eventual abusador?
Voltemos ao conceito básico: o sigilo é uma
garantia do fiel que se confessa,
não de terceiros que foram acusados em confissão. O sacerdote, neste caso, não
poderia relatar a situação à polícia não em razão de proteger o suposto
abusador, mas sim em virtude do sigilo sacramental da vítima, que poderia não
ter interesse em ver esta situação vinda a público. É um direito da suposta
vítima que aquilo que foi dito em confissão jamais será revelado. O padre não
poderia informar nada a ninguém enquanto a penitente não lhe desse autorização
para tanto, de modo que é injusto que ele responda por perdas e danos por algo
que não estava autorizado a fazer nos termos da lei canônica. Sem a autorização
da menina - que só foi dada anos depois, no tribunal -, o padre não poderia
comentar com ninguém o que ouvira em confissão. Agora, no tribunal, já pode,
pois foi autorizado pela penitente.
A situação seria diferente se o suposto
abusador viesse se confessar com o sacerdote e admitisse que abusou da menina.
Neste caso, o sacerdote está obrigado a preservar o sigilo do penitente
abusador, e não poderá dizer que este confessou o abuso, mesmo que para isso o
sacerdote tenha de enfrentar a prisão.
Então, o sacerdote do nosso caso pode narrar
os fatos da confissão feita pela menina, vez que esta já o autorizou a tornar
públicas tais confissões. Como disse, aquilo que a menina confessou é apenas a
sua versão dos fatos narrada ao sacerdote - não é prova cabal dos abusos.
Por outro lado, fazendo um exercício de
raciocínio, pode ser que o sacerdote e a diocese não tenham se equivocado
quanto a esta questão, mas que tenham deliberadamente distorcido a doutrina do "sigilo
sacramental", mesmo sabendo que ela não se aplicava depois que a penitente
autorizou sua revelação, para não serem considerados responsáveis por não
informar as autoridades civis.
Esta a consequência de uma lei civil que
não respeita a consciência dos ministros religiosos e dos fiéis - levá-los a
dizer "verdades pela metade" (no caso, não expor a doutrina do sigilo
sacramental em sua inteireza, mas apenas em parte). O sigilo sacramental deve
ser guardado a todo custo, menos se o
penitente desobrigar o padre. É esta última condição (a autorização do
fiel) que o padre e a diocese se "esqueceram"
de informar ao tribunal (ou, provavelmente, preferiram não informar, querendo
induzir o tribunal a erro de que o sigilo sacramental era absoluto mesmo quando
o penitente desobrigava o padre - o que é falso).
A afirmação do sacerdote e da diocese de
que o sigilo sacramental é absoluto mesmo contra a autorização do penitente não
encontra suporte na esmagadora maioria das opiniões abalizadas sobre o tema,
desde S. Tomás de Aquino e S. Boaventura até os dias atuais, como provei acima ao citar 20 autores
diferentes que consegui consultar diretamente.
Ora, basta o tribunal civil respeitar o
fato de que aquilo que foi dito em confissão não pode ser revelado sem
autorização do penitente para se ter claro que nem o padre, nem a diocese
poderiam informar qualquer coisa a quem quer que fosse à época em que os fatos
ocorreram. Sem o consentimento do penitente, inexistente à época, o padre não
pode contar a ninguém - nem mesmo a seu superior eclesiástico.
Como o tribunal parece não comungar deste
entendimento (no que está errado), para
os magistrados, independentemente da vontade da menina à época (em que possuía
apenas 14 anos), o padre teria que informar a polícia o que ouviu em confissão,
e seria responsável junto com a diocese por pagar indenização em razão de não
ter informado. É a velha história do Estado que não quer respeitar as leis
canônicas, por entender, na prática, que ele é uma espécie de "Deus deste
mundo" capaz de dominar completamente a vida e a consciência das pessoas -
o que é falso. Há uma dimensão religiosa de contato do ser humano com Deus que
nem mesmo o Estado pode ousar tocar. E o desrespeito ao sacramento da confissão
por parte do Estado é isto - uma grave violação da liberdade religiosa dos
cidadãos católicos (no caso dos EUA, também uma grave violação da separação
entre Igreja e Estado, a chamada Establishment
Clause da Primeira Emenda à Constituição).
A questão é tão séria que S. Tomás e S.
Afonso de Ligório afirmam com todas as letras que, se um padre for instado a
falar sobre uma confissão quando está obrigado pelo sigilo, pode, sob
juramento, afirmar que nada ouviu ou nada sabe. Ora, estariam os dois santos
incitando o padre a mentir? De forma alguma. S. Tomás afirma com propriedade (Questão 11 - Artigo 1. Suplemento da Suma Teológica) que o padre, ao ouvir a confissão, age no lugar de Deus, como gestor das coisas
divinas. O que vem a conhecer pela confissão o faz in
persona Christi, e não como mero homem. Assim, quando jura que falará a
verdade e afirma que nada sabe de uma confissão, não está a mentir: jura como
homem, e, enquanto mero homem, de fato o padre não pode ouvir confissão alguma
nem recebe este conhecimento a partir de um ofício humano. Portanto, como homem
que depõe no tribunal, o padre nada sabe, pois não foi enquanto mero homem que ele ouviu a confissão.
Cogito ainda uma outra teoria, que daria
contornos heroicos à atuação do padre (embora eu creia que a explicação acima, de
distorção do sigilo sacramental para livrar-se de uma injusta condenação, seja
mais plausível). O problema aqui pode ser outro: tanto a suposta vítima como o
suposto abusador eram da mesma paróquia. Portanto, é possível que o suposto
abusador tenha se confessado com o mesmo sacerdote e, quiçá, tenha confessado o
crime ao clérigo. Neste caso, o padre não pode sequer mencionar que o suposto
abusador se aproximou dele, pois aí estaria a violar o sigilo sacramental do
abusador.
Para evitar isto, lança uma cortina de
fumaça sobre o pedido da menina, como se não soubesse que estaria autorizado a
falar sobre a confissão dela. Faz-se de "bobo" sem o ser. Na verdade,
ele sabe que a menina pode autorizar a publicação da confissão dela - o que ele
quer evitar é, na verdade, ser colocado em uma situação em que se possa
insinuar que o suposto abusador também se aproximou dele para confessar.
Imaginem a cena: na sala de audiência do
tribunal, o padre começa a falar da confissão da menina, pois ela o autorizou a
tanto. Vocês realmente acham que o advogado da menina ficará só aí ou tentará
provocar o padre para extrair alguma informação sobre eventual confissão do
suposto abusador? O sistema americano de inquirição de testemunhas é aquele em
que o advogado formula questões diretamente à testemunha. Agora, se o padre se
recusar a responder qualquer coisa sobre o possível abusador, como isto soará?
Se o advogado perguntar: "o acusado se aproximou de você para confessar?"
E o padre responder: "não estou autorizado a responder isso", como
isto soará? No mínimo, que o padre quer proteger o eventual abusador. Ora, se
quer proteger é por que é provável que o abusador tenha se confessado com ele
e, mais ainda, é possível que esta confissão tenha algo de podre.
Portanto, se o padre continuar a bater o pé
de nada falar e resolver ser preso por isso, terá meu respeito, por qualquer
uma das razões acima: seja por mostrar que exigir dele que informasse o
conteúdo de uma confissão sem autorização do penitente é um grave atentado
contra sua consciência e sua liberdade como ministro religioso, seja por querer
proteger um outro penitente que com ele também teria se confessado - o possível
abusador.
Simplesmente não creio que ele sofreria
consequências tão drásticas (ser preso) por mera ignorância do direito canônico
ou da teologia - há excelentes canonistas e teólogos na América do Norte
prontos para avisá-lo da possibilidade de falar de uma confissão autorizada
pela penitente.
Há mais nesta história do que a simples
ignorância do padre e da diocese - ambos devem saber que o sigilo sacramental
não se aplica quando a penitente autorizou que se fale sobre a confissão dela.
Agora é aguardar para ver como terminará este verdadeiro imbroglio - mais um vindo da Igreja Americana, já tão combalida pelo escândalo dos padres pedófilos.