terça-feira, 22 de julho de 2014

PODE O FIEL AUTORIZAR O SACERDOTE A REVELAR O TEOR DE SUA CONFISSÃO? (II)

Como visto no post anterior sobre o tema, há um interesse da menina abusada de que o sacerdote confirme os fatos que dela ouviu na confissão alguns anos atrás. Veja que o padre não foi testemunha ocular dos abusos - apenas a menina e seus pais pedem que ele confirme que a menina, em confissão, narrou os abusos cometidos por terceiro.

Caberá ao tribunal então valorar este possível depoimento do sacerdote como entender devido. Poderá ser entendido, por exemplo, como uma prova que corrobore as outras provas sobre o abuso, pois, em geral, um católico quando vai ao confessionário está com o espírito desarmado e tende a narrar ao sacerdote apenas fatos verdadeiros que com ele aconteceram. Pode ser, ao revés, que o tribunal entenda que isto nada prova, pois o sacerdote não testemunhou nada, apenas ouviu a versão dos fatos que a menina lhe contou. Ou seja, o valor desta prova para o deslinde da causa dependerá dos julgadores.

É inequívoco, contudo, que se o próprio fiel desobrigou o sacerdote do sigilo, e deseja inclusive que o sacerdote torne público o conteúdo de sua confissão, não há problema algum nisto.

Mas alguém dirá: e o sigilo do acusado, do eventual abusador?

Voltemos ao conceito básico: o sigilo é uma garantia do fiel que se confessa, não de terceiros que foram acusados em confissão. O sacerdote, neste caso, não poderia relatar a situação à polícia não em razão de proteger o suposto abusador, mas sim em virtude do sigilo sacramental da vítima, que poderia não ter interesse em ver esta situação vinda a público. É um direito da suposta vítima que aquilo que foi dito em confissão jamais será revelado. O padre não poderia informar nada a ninguém enquanto a penitente não lhe desse autorização para tanto, de modo que é injusto que ele responda por perdas e danos por algo que não estava autorizado a fazer nos termos da lei canônica. Sem a autorização da menina - que só foi dada anos depois, no tribunal -, o padre não poderia comentar com ninguém o que ouvira em confissão. Agora, no tribunal, já pode, pois foi autorizado pela penitente.

A situação seria diferente se o suposto abusador viesse se confessar com o sacerdote e admitisse que abusou da menina. Neste caso, o sacerdote está obrigado a preservar o sigilo do penitente abusador, e não poderá dizer que este confessou o abuso, mesmo que para isso o sacerdote tenha de enfrentar a prisão.
Então, o sacerdote do nosso caso pode narrar os fatos da confissão feita pela menina, vez que esta já o autorizou a tornar públicas tais confissões. Como disse, aquilo que a menina confessou é apenas a sua versão dos fatos narrada ao sacerdote - não é prova cabal dos abusos.

Por outro lado, fazendo um exercício de raciocínio, pode ser que o sacerdote e a diocese não tenham se equivocado quanto a esta questão, mas que tenham deliberadamente distorcido a doutrina do "sigilo sacramental", mesmo sabendo que ela não se aplicava depois que a penitente autorizou sua revelação, para não serem considerados responsáveis por não informar as autoridades civis.

Esta a consequência de uma lei civil que não respeita a consciência dos ministros religiosos e dos fiéis - levá-los a dizer "verdades pela metade" (no caso, não expor a doutrina do sigilo sacramental em sua inteireza, mas apenas em parte). O sigilo sacramental deve ser guardado a todo custo, menos se o penitente desobrigar o padre. É esta última condição (a autorização do fiel) que o padre e a diocese se "esqueceram" de informar ao tribunal (ou, provavelmente, preferiram não informar, querendo induzir o tribunal a erro de que o sigilo sacramental era absoluto mesmo quando o penitente desobrigava o padre - o que é falso).

A afirmação do sacerdote e da diocese de que o sigilo sacramental é absoluto mesmo contra a autorização do penitente não encontra suporte na esmagadora maioria das opiniões abalizadas sobre o tema, desde S. Tomás de Aquino e S. Boaventura até os dias atuais, como provei acima ao citar 20 autores diferentes que consegui consultar diretamente.

Ora, basta o tribunal civil respeitar o fato de que aquilo que foi dito em confissão não pode ser revelado sem autorização do penitente para se ter claro que nem o padre, nem a diocese poderiam informar qualquer coisa a quem quer que fosse à época em que os fatos ocorreram. Sem o consentimento do penitente, inexistente à época, o padre não pode contar a ninguém - nem mesmo a seu superior eclesiástico.

Como o tribunal parece não comungar deste entendimento (no que está errado), para os magistrados, independentemente da vontade da menina à época (em que possuía apenas 14 anos), o padre teria que informar a polícia o que ouviu em confissão, e seria responsável junto com a diocese por pagar indenização em razão de não ter informado. É a velha história do Estado que não quer respeitar as leis canônicas, por entender, na prática, que ele é uma espécie de "Deus deste mundo" capaz de dominar completamente a vida e a consciência das pessoas - o que é falso. Há uma dimensão religiosa de contato do ser humano com Deus que nem mesmo o Estado pode ousar tocar. E o desrespeito ao sacramento da confissão por parte do Estado é isto - uma grave violação da liberdade religiosa dos cidadãos católicos (no caso dos EUA, também uma grave violação da separação entre Igreja e Estado, a chamada Establishment Clause da Primeira Emenda à Constituição).

A questão é tão séria que S. Tomás e S. Afonso de Ligório afirmam com todas as letras que, se um padre for instado a falar sobre uma confissão quando está obrigado pelo sigilo, pode, sob juramento, afirmar que nada ouviu ou nada sabe. Ora, estariam os dois santos incitando o padre a mentir? De forma alguma. S. Tomás afirma com propriedade (Questão 11 - Artigo 1. Suplemento da Suma Teológica) que o padre, ao ouvir a confissão, age no lugar de Deus, como gestor das coisas divinas. O que vem a conhecer pela confissão o faz in persona Christi, e não como mero homem. Assim, quando jura que falará a verdade e afirma que nada sabe de uma confissão, não está a mentir: jura como homem, e, enquanto mero homem, de fato o padre não pode ouvir confissão alguma nem recebe este conhecimento a partir de um ofício humano. Portanto, como homem que depõe no tribunal, o padre nada sabe, pois não foi enquanto mero homem que ele ouviu a confissão.

Cogito ainda uma outra teoria, que daria contornos heroicos à atuação do padre (embora eu creia que a explicação acima, de distorção do sigilo sacramental para livrar-se de uma injusta condenação, seja mais plausível). O problema aqui pode ser outro: tanto a suposta vítima como o suposto abusador eram da mesma paróquia. Portanto, é possível que o suposto abusador tenha se confessado com o mesmo sacerdote e, quiçá, tenha confessado o crime ao clérigo. Neste caso, o padre não pode sequer mencionar que o suposto abusador se aproximou dele, pois aí estaria a violar o sigilo sacramental do abusador.

Para evitar isto, lança uma cortina de fumaça sobre o pedido da menina, como se não soubesse que estaria autorizado a falar sobre a confissão dela. Faz-se de "bobo" sem o ser. Na verdade, ele sabe que a menina pode autorizar a publicação da confissão dela - o que ele quer evitar é, na verdade, ser colocado em uma situação em que se possa insinuar que o suposto abusador também se aproximou dele para confessar.

Imaginem a cena: na sala de audiência do tribunal, o padre começa a falar da confissão da menina, pois ela o autorizou a tanto. Vocês realmente acham que o advogado da menina ficará só aí ou tentará provocar o padre para extrair alguma informação sobre eventual confissão do suposto abusador? O sistema americano de inquirição de testemunhas é aquele em que o advogado formula questões diretamente à testemunha. Agora, se o padre se recusar a responder qualquer coisa sobre o possível abusador, como isto soará? Se o advogado perguntar: "o acusado se aproximou de você para confessar?" E o padre responder: "não estou autorizado a responder isso", como isto soará? No mínimo, que o padre quer proteger o eventual abusador. Ora, se quer proteger é por que é provável que o abusador tenha se confessado com ele e, mais ainda, é possível que esta confissão tenha algo de podre.

Portanto, se o padre continuar a bater o pé de nada falar e resolver ser preso por isso, terá meu respeito, por qualquer uma das razões acima: seja por mostrar que exigir dele que informasse o conteúdo de uma confissão sem autorização do penitente é um grave atentado contra sua consciência e sua liberdade como ministro religioso, seja por querer proteger um outro penitente que com ele também teria se confessado - o possível abusador.

Simplesmente não creio que ele sofreria consequências tão drásticas (ser preso) por mera ignorância do direito canônico ou da teologia - há excelentes canonistas e teólogos na América do Norte prontos para avisá-lo da possibilidade de falar de uma confissão autorizada pela penitente.

Há mais nesta história do que a simples ignorância do padre e da diocese - ambos devem saber que o sigilo sacramental não se aplica quando a penitente autorizou que se fale sobre a confissão dela. Agora é aguardar para ver como terminará este verdadeiro imbroglio - mais um vindo da Igreja Americana, já tão combalida pelo escândalo dos padres pedófilos.


PODE O FIEL AUTORIZAR O SACERDOTE A REVELAR O TEOR DE SUA CONFISSÃO? (I)

Como sempre faço, respondo desde agora a pergunta: sim, o fiel pode autorizar o sacerdote a revelar o teor de sua confissão.

O caso que analisamos hoje é incomum (obviamente, é também trágico, pois se trata de suposto abuso sexual de um menor por um leigo dentro do ambiente da Igreja): uma menina norte-americana do Estado de Louisiana, aos 14 anos de idade, confessa a um sacerdote que estava sofrendo abuso sexual de um membro da paróquia agora já falecido. A menina, representada por seus pais, vai ao Judiciário buscar indenização civil pelo abuso sofrido, tanto contra o espólio do suposto abusador, como também contra o sacerdote (por negligência deste no dever de relatar os fatos à autoridade estatal competente) e contra a diocese (responsabilidade desta por ato de seu preposto, a saber, o padre, que deixou de informar a autoridade civil).

Neste momento, o sacerdote é chamado a dar o seu depoimento para confirmar que a menina de fato confessou-se com ele á época e que o teor de tal confissão versava sobre abuso sexual sofrido pela menina por parte de um membro da paróquia.

O sacerdote, então, alega que não está autorizado pelo direito canônico a confirmar se a menina confessou e nem o teor desta confissão, uma vez que o sigilo da confissão o impede, sob pena de ser excomungado automaticamente (excomunhão latae sententiae prevista no cân. 1388, 1). A diocese afirma o mesmo.

O tribunal assevera que o sacerdote poderia depor sobre os fatos ocorridos durante a confissão, uma vez que a protegida pelo sigilo, que era a menina, já o autorizou a fazê-lo. Contudo, se não depusesse e preferisse ficar calado, poderia incorrer no que o direito norte-americano chama de contempt of court, ou seja, a possibilidade de ser preso por ofender a dignidade da Corte ao não cumprir ordem judicial. No direito americano, somente o réu em processo criminal pode ficar calado – o réu em processo civil (é o caso do padre) deve depor e obriga-se a dizer a verdade, sob juramento (se mentir, poderá cometer o crime de perjúrio).

Em primeiro lugar, deve-se louvar o zelo de sacerdotes que demonstrem sua disposição para serem presos caso sejam obrigados a violar o sigilo sacramental. Realmente, se os sacerdotes não tivessem este ânimo de sofrer atrozes penas para não trair sua missão, a confissão como sacramento rapidamente cairia em descrédito, pois quem contaria seus pecados a um homem que, embora sendo instrumento de Deus, estivesse disposto a publicá-los aos quatro ventos no dia seguinte?

Por isso mesmo a Igreja pune com sua pena mais severa (a excomunhão, e na modalidade latae sententiae ou automática) o sacerdote que viola tal segredo, sendo o levantamento de tal excomunhão reservado à Sé Apostólica. Ou seja, grau máximo de severidade no tratamento da questão. Em tempos idos, como atesta o IV Concílio do Latrão (1215), o sacerdote que revelasse o segredo de confissão não somente seria suspenso do exercício das sagradas ordens, como seria compulsoriamente recolhido a um mosteiro de clausura para fazer penitência perpétua. Duro, mas indica a importância que a Igreja dava e dá ao sigilo sacramental.

O sigilo sacramental é uma garantia em favor do fiel penitente, ou seja, de que tudo que o fiel narrou na confissão não será revelado sob hipótese alguma. Porém, quando o próprio fiel autoriza o sacerdote a divulgar o conteúdo da confissão, é o próprio fiel a permitir que a história do que se passou no confessionário venha a público.

Neste sentido é a lição da Suma Teológica sobre o tema, no Suplemento post mortem elaborado a partir dos Comentários de S. Tomás de Aquino ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Scriptum Super Quarto Libro Sententiarum, Distinctio XXI, Quaestio III, Art. II et III[1]). Por ser mais acessível o texto da Suma Teológica, passo a citá-lo:

"Questão 11 - Artigo 4.
Art. 4 ─ Se com licença do penitente pode o sacerdote revelar a outrem o pecado ouvido sob o sigilo da confissão.

O quarto discute-se assim. ─ Parece que com licença do penitente não pode o sacerdote revelar a outrem o ouvido sob o sigilo da confissão.

1. ─ Pois, o que não pode o superior não pede o inferior. Ora, o Papa a ninguém poderá dar licença de revelar a outrem o pecado ouvido em confissão. Logo, nem o penitente poderia dar essa licença.
2. Demais. ─ O instituído em vista do bem comum não pode ser mudado por arbítrio de um particular. Ora, o sigilo da confissão foi instituído para o bem de toda a Igreja,a fim de que os homens se acerquem da confissão com mais confiança. Logo, o penitente não pode dar ao sacerdote licença para revelar a sua confissão.
3. Demais. ─ Se ao sacerdote pudesse ser dada essa licença, seria dada aos maus sacerdotes para encobrir a malícia, pois poderiam alegar que licença lhes foi dada, para assim pecarem impunemente. O que é inadmissível. E portanto, parece que não podem ter tal licença do penitente.
4. Demais. ─ Quem recebesse a revelação dessa confissão não estaria obrigado ao segredo. E assim poderia tornar público um pecado já perdoado. O que é inadmissível. Logo, não pode o sacerdote receber essa licença.

Mas, em contrário. ─ Com o consentimento do penitente, o superior pode mandar um pecador a um sacerdote inferior, levando-lhe carta. Logo, por vontade do penitente pode o pecado ser revelado a outrem.

2. Demais. ─ Quem pode agir por si também o pode por outrem. Ora, o penitente pode revelar o seu pecado, que por si cometeu, a outrem. Logo, também o pode fazer pelo sacerdote.

SOLUÇÃO. ─ Duas são as razões por que está o sacerdote obrigado ao sigilo: primeiro e principalmente, porque essa ocultação é da essência do sacramento, pois, o sacerdote conhece os pecados como Deus, cujas vezes faz na confissão; segundo, para evitar escândalo. Mas, o penitente pode fazer o sacerdote conhecer também como homem o que só como Deus o sabia; e isso, dando-lhe licença de revelar a confissão. Contudo, o sacerdote deve, ao revelar, evitar o escândalo de ser tido como infrator do sigilo da confissão.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÁO. ─ O Papa não pode dar ao sacerdote licença de revelar a confissão, porque não pode fazê-lo conhecedor dela como homem. Mas isso o pode o penitente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ No caso não fica eliminado o instituído para o bem comum, pois não há quebra do sigilo da confissão quando se diz o que de outro modo foi sabido.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Por aí não se confere impunidade aos maus sacerdotes, pois lhes incumbe provar, se acusados, que revelaram por licença do penitente.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Quem chega ao conhecimento do pecado, mediante o sacerdote e por vontade do penitente, participa de algum modo do ato do sacerdote. Por isso se dá com ele o mesmo que com o intérprete; salvo se o pecador quiser que absoluta e livremente saiba da confissão."

Todas as 20 obras por mim consultadas admitem que o penitente autorize o confessor a falar, seguindo a lição do Aquinate - o penitente pode liberar o confessor do sigilo sacramental, desde que o penitente o faça de modo expresso para evitar qualquer aparência escandalosa de que o sacerdote estaria a revelar um segredo de confissão. Assim é em: S. Boaventura[2], Capreolus[3], Bañez[4], Salmanticenses[5], Billuart[6], S. Afonso de Ligório[7], Konings[8], Marc e Gestermann[9], Merkelbach[10], Noldin-Schmitt[11], Peeters[12], Prümmer[13], Regatillo[14], Tanquerey[15], Vermeersch[16], Wouters[17], Bucceroni[18], Aertnys e Damen[19] e Davis[20].

[Continua em próximo post]




[1] Scriptum super sententiis Magistri Petri Lombardi. Parisiis: P. Lethielleux, 1947. p. 1.071-1.075.
[2] S. Bonaventurae. Opera Omnia - Commentaria in Quatuor Libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi: In Quartum Librum Sententiarum. T. IV. Florença: Quaracchi, 1889. p. 568. Eis a conclusão de S. Boaventura: "Conclusio: Confitens potest licentiare confessarium, ut peccata revelet, in casu, in quo non timetur scandalum."
[3] CAPREOLI, Johannis. Defensiones Theologiae Divi Thomae Aquinatis. Tomus VI. Turonibus: Alfred Cattier, 1906. p. 425: "Quarta conclusio est quod sacerdos de voluntate confitentis potest revelare peccatum sibi confessum." Ex quibus potest sit argui: Cessante causa, cessat effectus. Sed confitens dans licentiam sacerdoti revelandi suam confessionem, tollit causam celationis. Ergo et effectum."
[4] BAÑEZ, Domingo. Comentarios ineditos a la tercera parte de Santo Tomas. De Sacramentis. Tomo II. Segunda parte. Madrid: Biblioteca de Teólogos Españoles, 1953. p. 757: "Utrum sacerdos possit revelare confessionem de licentia poenitentis? Conclusio est affirmativa. Ratio est quia quando homo qui confessus est concedit talem facultatem, jam facit ut confessor sciat talem secretum ut homo et non solum loco Dei."
[5] Cursus Theologicus, n. 58. Tomus Vigesimus. Parisiis: Victor Palmé, 1883. p. 550 e ss.
[6] BILLUART, Caroli Renati. Summa Sancti Thomae hodiernis academiarum moribus accomodata sive Cursus Theologiae juxta mentem Divi Thomae. Tomus IX. Parisiis: Victorem Lecoffre, 1886. 448-450.
[7] LIGORIO, Alphonsi Mariae de. Theologia Moralis. Tomus Tertius. Graz: Akademische Druck U., 1954. n. 651. p. 672-673.
[8] KONINGS, A. Theologia Moralis. V. II. 7 ed. Nova Iorque: Benziger Fratres, 1890. n. 1489, IV. p. 189.
[9] MARC, Cl.; GESTERMANN, X. Institutiones Morales Alphonsianae. Tomus Secundus. 19. ed. Lutetiae Parisiorum: Emmanuelis Vitte, 1934. n. 1866, 7º. p. 401.
[10] MERKELBACH, Benedictus Henricus. Summa Theologiae Moralis. T. III: De Sacramentis. 11 ed. Brugis: Desclée de Brouwer, 1962. n. 622. p. 584.
[11] NOLDIN, H.; SCHMITT, A. Summa Theologiae Moralis. V. III: De Sacramentis. Oeniponte: Feliciani Rauch, 1960. 32 ed. n. 409. p. 351-352.
[12] PEETERS, Hermes. Manuale Theologiae Moralis. V. III: Pars Sacramentaria. Roma: Marietti, 1963. p. 166.
[13] PRÜMMER, Dominicus. Manuale Theologiae Moralis. Tomus III. 12. ed. Friburgi Brisgoviae: Herder, 1955. p. 317.
[14] REGATILLO, Eduardo. Theologiae Moralis Summa. V. III. Matriti: BAC, 1954. n. 492. p. 365-366.
[15] TANQUEREY, A. Synopsis Theologiae Moralis et Pastoralis. Tomus Primus: De Paenitentia, De Matrimonio et Ordine. 7. ed. Romae: Desclée, 1920. n. 500. p. 300.
[16] VERMEERSCH, Arthurus. Theologiae Moralis: principia, responsa, consilia. Tomus III. De personis, de sacramentis, de Ecclesiae praeceptis et censuris. Romae: Charles Beyaert, 1923. n. 513, p. 413-414.
[17] WOUTERS, Ludovico. Manuale Theologiae Moralis. Tomus II. Brugis: Carolus Beyaert, 1933. n. 433. p. 339.
[18] BUCCERONI, Ianuario. Institutiones Theologiae Moralis. V. III. 6. ed. Romae: Typographia Pontificia in Instituto Pii IX, 1915. n. 843. p. 533-534.
[19] AERTNYS, I.; DAMEN, C. Theologia Moralis. Tomus II. 17. ed. Romae: Marietti, 1958. p. 412-414.
[20] DAVIS, Henry. Moral and Pastoral Theology. V. 3. 8. ed. London, New York: Sheed and Ward, 1959. p. 318.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O USO DO VÉU PELAS MULHERES NA MISSA É OBRIGATÓRIO?

Recentemente, participei de uma breve discussão sobre a obrigatoriedade do uso do véu por parte das mulheres durante a Missa. Como costumo fazer, desde já respondo a pergunta que dá título ao post: o uso do véu por parte das mulheres não é obrigatório durante a Missa, seja esta Missa celebrada na Forma Ordinária ou na Forma Extraordinária do Rito Romano (para os que não sabem, a Forma Extraordinária é aquela forma da Missa celebrada em latim, com o sacerdote de frente para o Ssmo. Sacramento no tabernáculo e de costas para o povo, segundo a liturgia anterior à reforma litúrgica de 1969 ordenada pelo Papa Paulo VI). 

A questão é extremamente debatida, especialmente em blogs e fóruns de língua inglesa, em razão de que algumas pessoas, ligadas à Forma Extraordinária do Rito Romano, às vezes afirmam peremptoriamente que as mulheres devem usar véu durante a Missa (ou ao menos devem usar o véu se estiverem assistindo à Missa na Forma Extraordinária do Rito Romano). Alegam que o cânone 1262, § 2 do Código de Direito Canônico de 1917, que veiculava a obrigatoriedade do uso do véu, não teria sido expressamente revogado pelo Código de Direito Canônico de 1983, razão pela qual a obrigação continuaria existindo nos dias de hoje. Vejamos o cânone 1262, § 2:

Cân. 1262 §2. Os homens, na igreja ou fora dela, enquanto assistem aos sagrados ritos, devem manter a cabeça descoberta, salvo se diversamente estabelecido por costumes dos povos aprovados ou por circunstâncias peculiares; as mulheres, contudo, devem manter a cabeça coberta e vestimenta modesta, sobretudo quando se aproximam da mesa do Senhor.

Para verificar esta opinião de que o cân. 1262, § 2 subsistiria, vamos ao atual Código de Direito Canônico (1983), em seu cân. 6, §1, 1º:

Cân. 6 — § 1. Com a entrada em vigor deste Código, são ab-rogados:
1.° o Código de Direito Canônico promulgado no ano de 1917;

Em terminologia jurídica, seja no direito estatal ou no canônico, "ab-rogar" significa "revogar totalmente" (para revogação parcial, usa-se o termo "derrogar"). Ou seja, o Código de Direito Canônico de 1917 foi integralmente revogado (ab-rogado). Portanto, ele não pode mais ser invocado como norma em vigor. Desta forma, o cânone 1262, § 2 foi revogado junto com todo o Código de 1917. Isto não está aberto para discussão e seria um erro crasso e primário em direito (não só o canônico) afirmar que este cânone está em vigor.

Façamos, como o fez Edward Peters, doutor em direito canônico, o seguinte exercício, para ver o absurdo da proposição: se o cân. 1262, § 2 do Código de 1917 não foi revogado em razão de que não foi expressamente citada sua revogação, então o que fazer com os outros 2.414 cânones do Código de 1917? Eles também não foram expressamente citados por nenhum ato de revogação. Logo, estão em vigor? Óbvio que não! O legislador foi bem claro no cân. 6, § 1, 1º - o Código de 1917 foi revogado com todos os seus cânones. Não se pode mais citar o Código de 1917 como fonte normativa vigente - e este ponto não é discutível, a não ser que a pessoa queira sustentar que o Papa João Paulo II não poderia ab-rogar o Código de 1917, o que é uma tese que beira o cisma ou o sedevacantismo (pois se o legislador supremo não pode mudar a principal compilação de normas da Igreja, então ele não é legislador supremo; ora, se o Papa não é legislador supremo, ele é verdadeiramente Papa? Já se vê onde este argumento nos vai levar, para caminhos tortuosos e perigosos...)

Diante do inarredável fato da ab-rogação do Código de 1917, admito que é possível explorar uma tese mais sofisticada, mas na qual não acredito. Vou expô-la aqui: é a tese do costume imemorial

Segundo esta tese, é costume imemorial que as mulheres cubram a cabeça no templo, pois São Paulo já o menciona (I Coríntios 11,5), bem como diversos Padres da Igreja. Assim, o Código de 1917, em seu cân. 1262, §2, na verdade não constituiu uma nova obrigação: simplesmente declarou uma obrigação preexistente que já existia desde tempos imemoriais por força do costume. Portanto, quando o Código de 1917 foi ab-rogado (e seu cânone 1262, §2 juntamente com ele), isto não mudou o fato de que o costume imemorial permaneceu de pé. Se o cân. 1262, § 2 não teve eficácia constitutiva da obrigação, mas meramente declaratória de uma obrigação decorrente de um costume imemorial, logo, a revogação do cânone manteve a mesma situação de antes: a permanência do costume imemorial.

Esta é uma afirmação mais difícil de ser respondida, pois ela não apela para o ab-rogado Código de 1917 (apelar para este Código é errado - ponto final). Esta argumentação é muito mais sutil pois afirma que, independentemente do Código de 1917, a obrigação já existia por costume imemorial. Mesmo que o Código de 1917 jamais tivesse declarado a obrigação, isto em nada mudaria o costume. 

O problema é que o Código de 1917 existiu. E, qualquer que fosse o status do uso do véu antes do Código de 1917 (se costume imemorial, se previsto em alguma lei específica), no momento em que o uso do véu entrou no cân. 1262, §2, deixou de ser mero costume e passou a ser lei. E, se passou a ser lei, independentemente de antes ter sido um costume imemorial, já não era mais mero costume. Assim, quando veio o Código de 1983, o uso do véu era uma obrigação decorrente de lei (decorrente do Código de 1917), e não de costume. Portanto, uma lei pode ser revogada por outra de igual hierarquia, que foi exatamente o que ocorreu com o cân. 6, § 1, 1º do Código de 1983, o qual, de uma tacada só, revogou todos os cânones do Código de 1917 (inclusive a obrigação de usar o véu que no Código de 1917 não provinha mais do costume, mas da norma expressa do cân. 1262, §2).

Alguns alegam que esta distinção é artificial: não importa se foi assumido em uma lei expressa em 1917, o que realmente importa é que o uso do véu remonta aos tempos apostólicos, sendo seu uso ordenado pelo próprio S. Paulo, e que a lei não poderia mudar isto. Portanto, a assunção do costume pela lei é irrelevante.

Concedo que, se partirmos do pressuposto de que a legificação do costume (sua recepção por uma lei) pelo Código de 1917 é irrelevante, por se tratar de um costume imemorial que não é contrário à lei (a nova lei de 1983 simplesmente é silente sobre o tema), em tese o costume não teria sido ab-rogado junto com o Código de 1917.

O problema é que um costume não é ab-rogado somente por uma lei. Ele também pode perder vigência em razão daquilo que se chama tecnicamente de desuetudo, que, em termos mais simples, significa o "não uso do costume". É ínsito à noção de costume que esteja ainda sendo observado de forma frequente pela maioria das pessoas. Se cessar a prática do costume, por mais imemorial que ele seja, ele deixa de ser um costume. E o caso do véu se encaixa aqui: a esmagadora maioria das mulheres católicas, há cerca de 40 anos, não usa mais o véu.

Ou seja: ainda que se afirme tratar-se de costume imemorial, que atravessou diversos séculos (o que é verdade), ocorre que este costume, há 40 anos, não é mais observado, sem que as autoridades eclesiásticas hajam protestado ou reforçado a necessidade de cumprir a obrigação com base no costume. Ao revés, como se verá abaixo, as vozes mais abalizadas negam a subsistência da obrigação do uso do véu.

Perdoem-me se sou repetitivo, mas a coisa deve ficar bem clara para que as pessoas não saiam por aí criando para outros católicos obrigações que não existem. Este tema já gerou muitos problemas nos EUA, em que pessoas não versadas em direito canônico simplesmente não aceitavam a opinião dos especialistas (não é invenção da minha cabeça - para opiniões de diversos especialistas dizendo que não há mais obrigação, ver: Edward Peters, Dr. em Direito Canônico; Cathy Caridi, Mestre em Dir. Canônico.; Jimmy Akin, famoso apologeta católico dos EUA; Pe. Daniel Gill .
   
A coisa chegou a tal ponto que o Cardeal Raymond Leo Burke teve de entrar na controvérsia, mandando uma carta para uma fiel esclarecendo o tema com maestria. Apenas para situá-los: o Cardeal Burke, além de Prefeito do mais alto tribunal da Igreja depois do Papa (o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica), é canonista da mais alta qualidade e extremamente entusiasta da Forma Extraordinária do Rito Romano. Portanto, ninguém mais insuspeito que ele para falar. Nesta carta, datada de 4 de abril de 2011, ele é claro: não existe mais obrigação de uso do véu (ler aqui, em inglês), embora se espere que as mulheres que forem assistir à Missa na Forma Extraordinária dele façam uso, pois era assim que as mulheres iam à Missa quando estava em vigor o Missal de 1962 como Forma Ordinária do Rito Romano. Mas, em quaisquer das Formas, a ausência de uso do véu não constitui pecado (se não é pecado, é recomendável, mas não obrigatório). 

Por fim, uma declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1976 (portanto, antes do próprio Código de 1983) em que esta expressamente afirma: "Vai-se buscar motivo para objetar, igualmente, ao caráter caduco que se crê poder reconhecer hoje em dia nalgumas das prescrições de São Paulo respeitantes às mulheres, bem como nas dificuldades que hoje levantam, a propósito disto mesmo, alguns aspectos da sua doutrina. Importa acentuar, porém, que essas disposições paulinas, provavelmente inspiradas pelos usos de tempo, quase não abrangem senão práticas disciplinares de pouca importância, como por exemplo a obrigação imposta às mulheres de usarem o véu na cabeça (cfr. 1 Cor. 11, 2-16); tais exigências hoje já não têm valor normativo." (DECLARAÇÃO 

Concorde-se ou não com as declarações acima (pode ser que alguém ache que todos os especialistas acima, o cardeal Burke e a Congregação para a Doutrina da Fé estão todos redondamente enganados), obrigações jurídicas na Igreja não são brincadeira nem são matéria para serem tratadas por pessoas com pouco ou nenhum conhecimento técnico de direito canônico. Se existe uma obrigação estabelecida pela Igreja e esta é descumprida conscientemente, a pessoa peca, por vezes gravemente. Ex.: na Sexta-Feira da Paixão, nenhum católico se atreve a comer carne, pois a Igreja obriga a fazer abstinência de carne neste dia (cân. 1251). Ora, comer carne na Sexta-Feira da Paixão, conscientemente e sem motivo justo, é pecado, justamente por violar uma obrigação canônica. Da mesma forma, não ir a Missas de preceito é pecado grave, pois o fiel está canonicamente obrigado a participar da Missa (ou assistir à Missa, para os que preferirem a nomenclatura mais tradicional) nestes dias (cân. 1247). 

Assim, afirmar que atualmente há uma obrigação das mulheres em usar o véu é muito grave, pois se está afirmando que uma mulher que não usa o véu, se for advertida do fato, está pecando. Tal modo de ver as coisas é simplesmente equivocado atualmente e cria uma falsa obrigação para o fiel que já não mais existe. 

Isso quer dizer que, se o uso do véu não é obrigatório, ele é proibido? Devagar com o andor que o santo é de barro. O fato de algo não ser obrigatório não quer dizer que não seja permitido como matéria pessoal e privada, caso a mulher em questão entenda que o uso do véu é parte integrante da modéstia no vestir. E, ao fazê-lo, estará em boa companhia: S. Paulo, Padres da Igreja e séculos de costume canônico estão ao lado desta mulher, conferindo-lhe hoje a plena faculdade (mas não a obrigação) de usar o véu. Para as razões que encorajam o piedoso uso do véu (mas não obrigam), recomendo os esclarecimentos do Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr. aqui.

O maior exemplo disso: a Igreja só nos exige, como obrigação canônica, que comunguemos uma vez ao ano (cân. 920, § 1). Isto quer dizer que estou proibido de comungar em outras vezes? É óbvio que não! Ao revés, para alimentar a vida espiritual, o católico é encorajado, se puder, a comungar diariamente. Mas a lei obriga a comungar diariamente ou mesmo todos os domingos? Não. Outro exemplo: a lei canônica não obriga ninguém a rezar o teço. Isto quer dizer que a reza do terço é proibida? Pelo contrário: é poderosa arma espiritual e valiosa assistência no progresso da vida espiritual para muitos católicos. 

Da mesma forma o véu: se a mulher deseja usá-lo como matéria de devoção pessoal, pois a auxilia em sua caminhada espiritual, por favor, faça-o. Da mesma forma que não deve obrigar ou informar erroneamente outra mulher sobre uma obrigação inexistente, a mulher que usa o véu tem todo o direito de usá-lo na Igreja sem ser importunada por outros fiéis ou por membros do clero. Estes, se não gostarem da piedosa prática, que guardem sua desairosa opinião para si. Se for criticada por este motivo, a mulher estará sendo alvo de falta de caridade e abuso por parte do sacerdote, que extrapola das faculdades canônicas a ele concedidas se ousar importunar uma mulher pelo uso do véu. 

A moral do post: antes de sair brandindo obrigações canônicas como se fossem espadas de samurai (no melhor estilo: faça isso, faça aquilo), é importante saber do que se está tratando, a gravidade do assunto e ter o mínimo de formação em direito canônico para não pejar a consciência dos irmãos com cargas inexistentes. Orientar os outros mal por deficiência de formação é, no mínimo, uma falta de caridade (ou, se for por ignorância, então a pessoa deveria guardar a sua opinião para si e não querer impor nada a ninguém).

Obs: Não se está aqui discutindo se o fim da obrigatoriedade do véu foi ou não conveniente. O blog é de direito canônico, não de política eclesiástica. O direito canônico atual não sustenta mais esta obrigação. Por favor, reclamações contra a norma atual devem ser direcionadas à Casa Santa Marta, no Vaticano, onde atualmente reside o legislador supremo (o Papa). Queixas contra leis universais devem ser feitas a Sua Santidade - os pobres intérpretes do direito canônico, embora às vezes apanhem como se fossem o legislador ou pudessem mudar a lei, simplesmente trabalham com o material que o legislador lhes oferece.