Outra questão: se a lei civil permite a habilitação posterior ao casamento religioso com efeitos civis, de que modo pode a paróquia exigir habilitação prévia? Isto já não é um erro de direito canônico, mas sim de direito civil, uma vez que as paróquias e dioceses parecem desconhecer o fato de que a legislação civil há muito permite a habilitação posterior ao casamento religioso.
A origem de tal costume de se exigir o casamento prévio civil provavelmente remonta à separação entre Igreja e Estado levada a cabo pela República mediante o Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890. Neste momento inicial de tensão entre Igreja e Estado, a República estabeleceu que cometia crime aquele clérigo que realizasse o casamento de dois fiéis católicos que não houvessem antes casado segundo as leis civis, com estabelecimento de pena de prisão e multa.
O Decreto nº. 521, de 26.06.1890, vedou às autoridades religiosas a celebração do casamento religioso antes de celebrado o civil, estabelecendo sanção de seis meses de prisão e multa da metade do tempo, com aplicação do duplo da pena em caso de reincidência. O Código Penal de 1890 também criminalizou esta conduta no art. 284, impondo aos religiosos de qualquer confissão que o fizessem prisão celular de um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
Portanto, em razão desta legislação de mais de 100 anos e já há muito revogada, ficou o ranço que contaminou a própria Igreja de que, para casar na Igreja, deve-se antes buscar o casamento civil. Como vimos acima, esta visão é equivocada, seja da perspectiva civil, seja da canônica, e deveria ser sepultada de uma vez por todas pelas dioceses.
Nem se invoque aqui que, com esta exigência, procura-se apenas resguardar os direitos civis das partes envolvidas. Desde que a Constituição de 1988 praticamente equiparou o casamento à união estável, os direitos que seriam garantidos pelo casamento civil serão devidamente garantidos provada a união estável. E que forma mais clara de provar a união estável do que a existência de um casamento canônico? A maioria dos juízes, ao simplesmente ver uma certidão canônica matrimonial, terão por provada a união estável do casal, conferindo a ambos os direitos previstos pela legislação civil, que, atualmente equipara em quase tudo os casados aos companheiros (hoje, inclusive companheiros homossexuais). Aqui não estou a discutir a conveniência, da perspectiva moral, de se equiparar casamento à união estável - somente estou constatando como funciona o direito brasileiro atual, e, neste, os direitos de casados e companheiros são praticamente os mesmos na esfera civil, de modo que o zelo excessivo da Igreja com a condição civil de casado não se justifica. Antes, a Igreja deveria zelar pela condição canônica de casados de seus fiéis, e ensiná-los a valorizar a castidade pré-matrimonial, e não colocar óbices indevidos ao casamento canônico que, para as pessoas menos afeitas à burocracia, pode simplesmente passar a impressão de que casar na Igreja é muito complicado, pois esta exige antes que as pessoas se casem no civil. Ao revés, a lógica deveria ser inversa - o casamento civil é que não é o mais relevante para um católico, mas sim o casamento perante a Igreja.
Em suma, para os que não quiserem ler toda a explicação:
1) na seara civil, é equivocado exigir dos nubentes habilitação prévia ao casamento religioso com efeitos civis, pois a legislação civil confere aos nubentes o direito de requerer habilitação posterior.
2) na seara canônica, é equivocado invocar o cân. 1.071, §1, 2º para a situação em que os noivos poderiam se casar no civil, mas não o querem, desejando apenas casar-se perante a Igreja. Tal norma existe para casos em que a licença do Ordinário é exigida em razão de que os nubentes NÃO PODEM contrair matrimônio civil.
Já é hora de as dioceses e paróquias atualizarem seus conhecimentos de direito civil e canônico e não fazerem exigências que são simplesmente ilegais aos casais - ilegais no direito civil e no direito canônico.
Post scriptum: O que aqui foi dito também vale para outras religiões, pois o casamento religioso com efeitos civis previsto pela lei brasileira não se restringe ao casamento católico. Assim, não deveriam o rabino, o pastor ou qualquer outro ministro religioso exigir habilitação prévia ao casamento religioso com efeitos civis de seus fiéis.