Como sempre faço, respondo desde agora a
pergunta: sim, o fiel pode autorizar o
sacerdote a revelar o teor de sua confissão.
O caso que analisamos hoje é incomum
(obviamente, é também trágico, pois se trata de suposto abuso sexual de um
menor por um leigo dentro do ambiente da Igreja): uma menina norte-americana do
Estado de Louisiana, aos 14 anos de idade, confessa a um sacerdote que estava
sofrendo abuso sexual de um membro da paróquia agora já falecido. A menina,
representada por seus pais, vai ao Judiciário buscar indenização civil pelo
abuso sofrido, tanto contra o espólio do suposto abusador, como também contra o
sacerdote (por negligência deste no dever de relatar os fatos à autoridade estatal
competente) e contra a diocese (responsabilidade desta por ato de seu preposto,
a saber, o padre, que deixou de informar a autoridade civil).
Neste momento, o sacerdote é chamado a dar
o seu depoimento para confirmar que a menina de fato confessou-se com ele á
época e que o teor de tal confissão versava sobre abuso sexual sofrido pela
menina por parte de um membro da paróquia.
O sacerdote, então, alega que não está
autorizado pelo direito canônico a confirmar se a menina confessou e nem o teor
desta confissão, uma vez que o sigilo da confissão o impede, sob pena de ser
excomungado automaticamente (excomunhão latae
sententiae prevista no cân. 1388, 1). A diocese afirma o mesmo.
O tribunal assevera que o sacerdote poderia
depor sobre os fatos ocorridos durante a confissão, uma vez que a protegida
pelo sigilo, que era a menina, já o autorizou a fazê-lo. Contudo, se não
depusesse e preferisse ficar calado, poderia incorrer no que o direito
norte-americano chama de contempt of
court, ou seja, a possibilidade de ser preso por ofender a dignidade da Corte ao não cumprir ordem judicial. No
direito americano, somente o réu em processo criminal pode ficar calado – o réu
em processo civil (é o caso do padre) deve depor e obriga-se a dizer a verdade,
sob juramento (se mentir, poderá cometer o crime de perjúrio).
Em primeiro lugar, deve-se louvar o zelo de
sacerdotes que demonstrem sua disposição para serem presos caso sejam obrigados
a violar o sigilo sacramental. Realmente, se os sacerdotes não tivessem este
ânimo de sofrer atrozes penas para não trair sua missão, a confissão como
sacramento rapidamente cairia em descrédito, pois quem contaria seus pecados a
um homem que, embora sendo instrumento de Deus, estivesse disposto a
publicá-los aos quatro ventos no dia seguinte?
Por isso mesmo a Igreja pune com sua pena
mais severa (a excomunhão, e na modalidade latae
sententiae ou automática) o sacerdote que viola tal segredo, sendo o levantamento
de tal excomunhão reservado à Sé Apostólica. Ou seja, grau máximo de severidade
no tratamento da questão. Em tempos idos, como atesta o IV Concílio do Latrão
(1215), o sacerdote que revelasse o segredo de confissão não somente seria
suspenso do exercício das sagradas ordens, como seria compulsoriamente
recolhido a um mosteiro de clausura para fazer penitência perpétua. Duro, mas
indica a importância que a Igreja dava e dá ao sigilo sacramental.
O sigilo sacramental é uma garantia em
favor do fiel penitente, ou seja, de que tudo que o fiel narrou na confissão
não será revelado sob hipótese alguma. Porém, quando o próprio fiel autoriza o sacerdote a divulgar o conteúdo da confissão,
é o próprio fiel a permitir que a história do que se passou no confessionário
venha a público.
Neste sentido é a lição da Suma Teológica
sobre o tema, no Suplemento post mortem elaborado
a partir dos Comentários de S. Tomás de Aquino ao Livro das Sentenças de Pedro
Lombardo (Scriptum Super Quarto Libro
Sententiarum, Distinctio XXI, Quaestio III, Art. II et III[1]).
Por ser mais acessível o texto da Suma Teológica, passo a citá-lo:
"Questão 11 - Artigo 4.
Art. 4 ─ Se com licença do penitente
pode o sacerdote revelar a outrem o pecado ouvido sob o sigilo da confissão.
O quarto discute-se
assim. ─ Parece que com licença do penitente não pode o sacerdote revelar a
outrem o ouvido sob o sigilo da confissão.
1. ─ Pois, o que não
pode o superior não pede o inferior. Ora, o Papa a ninguém poderá dar licença
de revelar a outrem o pecado ouvido em confissão. Logo, nem o penitente poderia
dar essa licença.
2. Demais. ─ O
instituído em vista do bem comum não pode ser mudado por arbítrio de um
particular. Ora, o sigilo da confissão foi instituído para o bem de toda a
Igreja,a fim de que os homens se acerquem da confissão com mais confiança.
Logo, o penitente não pode dar ao sacerdote licença para revelar a sua
confissão.
3. Demais. ─ Se ao
sacerdote pudesse ser dada essa licença, seria dada aos maus sacerdotes para
encobrir a malícia, pois poderiam alegar que licença lhes foi dada, para assim
pecarem impunemente. O que é inadmissível. E portanto, parece que não podem ter
tal licença do penitente.
4. Demais. ─ Quem
recebesse a revelação dessa confissão não estaria obrigado ao segredo. E assim
poderia tornar público um pecado já perdoado. O que é inadmissível. Logo, não
pode o sacerdote receber essa licença.
Mas, em contrário.
─ Com o consentimento do penitente, o superior pode mandar um pecador a um
sacerdote inferior, levando-lhe carta. Logo, por vontade do penitente pode o
pecado ser revelado a outrem.
2. Demais. ─ Quem pode
agir por si também o pode por outrem. Ora, o penitente pode revelar o seu
pecado, que por si cometeu, a outrem. Logo, também o pode fazer pelo sacerdote.
SOLUÇÃO. ─ Duas são
as razões por que está o sacerdote obrigado ao sigilo: primeiro e principalmente,
porque essa ocultação é da essência do sacramento, pois, o sacerdote conhece os
pecados como Deus, cujas vezes faz na confissão; segundo, para evitar
escândalo. Mas, o penitente pode fazer o sacerdote conhecer também como homem o
que só como Deus o sabia; e isso, dando-lhe licença de revelar a confissão.
Contudo, o sacerdote deve, ao revelar, evitar o escândalo de ser tido como
infrator do sigilo da confissão.
DONDE A RESPOSTA À
PRIMEIRA OBJEÇÁO. ─ O Papa não pode dar ao sacerdote licença de revelar a confissão,
porque não pode fazê-lo conhecedor dela como homem. Mas isso o pode o penitente.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─
No caso não fica eliminado o instituído para o bem comum, pois não há quebra do
sigilo da confissão quando se diz o que de outro modo foi sabido.
RESPOSTA À TERCEIRA.
─ Por aí não se confere impunidade aos maus sacerdotes, pois lhes incumbe
provar, se acusados, que revelaram por licença do penitente.
RESPOSTA À QUARTA. ─
Quem chega ao conhecimento do pecado, mediante o sacerdote e por vontade do penitente,
participa de algum modo do ato do sacerdote. Por isso se dá com ele o mesmo que
com o intérprete; salvo se o pecador quiser que absoluta e livremente saiba da
confissão."
Todas as 20 obras por
mim consultadas admitem que o penitente autorize o confessor a falar, seguindo a
lição do Aquinate - o penitente pode liberar o confessor do sigilo sacramental,
desde que o penitente o faça de modo expresso para evitar qualquer aparência
escandalosa de que o sacerdote estaria a revelar um segredo de confissão. Assim
é em: S. Boaventura[2],
Capreolus[3],
Bañez[4],
Salmanticenses[5],
Billuart[6],
S. Afonso de Ligório[7],
Konings[8],
Marc e Gestermann[9],
Merkelbach[10],
Noldin-Schmitt[11],
Peeters[12],
Prümmer[13],
Regatillo[14],
Tanquerey[15],
Vermeersch[16],
Wouters[17],
Bucceroni[18],
Aertnys e Damen[19]
e Davis[20].
[Continua em próximo post]
[1] Scriptum super sententiis Magistri
Petri Lombardi. Parisiis: P. Lethielleux, 1947. p. 1.071-1.075.
[2] S. Bonaventurae. Opera Omnia - Commentaria
in Quatuor Libros Sententiarum Magistri
Petri Lombardi: In Quartum Librum Sententiarum. T. IV. Florença: Quaracchi,
1889. p. 568. Eis a conclusão de S. Boaventura: "Conclusio: Confitens potest licentiare confessarium, ut peccata
revelet, in casu, in quo non timetur scandalum."
[3] CAPREOLI, Johannis. Defensiones
Theologiae Divi Thomae Aquinatis. Tomus VI. Turonibus: Alfred Cattier,
1906. p. 425: "Quarta conclusio est quod sacerdos de voluntate confitentis
potest revelare peccatum sibi confessum." Ex quibus potest sit argui:
Cessante causa, cessat effectus. Sed confitens dans licentiam sacerdoti
revelandi suam confessionem, tollit causam celationis. Ergo et effectum."
[4] BAÑEZ, Domingo. Comentarios ineditos a la tercera parte de Santo
Tomas. De Sacramentis. Tomo II. Segunda parte. Madrid: Biblioteca de Teólogos
Españoles, 1953. p. 757: "Utrum sacerdos possit revelare confessionem de
licentia poenitentis? Conclusio est
affirmativa. Ratio est quia quando homo qui confessus est concedit talem
facultatem, jam facit ut confessor sciat talem secretum ut homo et non solum
loco Dei."
[5] Cursus Theologicus, n.
58. Tomus Vigesimus. Parisiis: Victor Palmé, 1883. p. 550 e ss.
[6] BILLUART, Caroli Renati. Summa Sancti Thomae hodiernis academiarum
moribus accomodata sive Cursus Theologiae juxta mentem Divi Thomae. Tomus IX.
Parisiis: Victorem Lecoffre, 1886. 448-450.
[7] LIGORIO, Alphonsi Mariae de. Theologia
Moralis. Tomus Tertius. Graz: Akademische Druck U., 1954. n. 651. p.
672-673.
[8] KONINGS, A. Theologia Moralis. V. II. 7 ed. Nova
Iorque: Benziger Fratres, 1890. n. 1489, IV. p. 189.
[9] MARC, Cl.; GESTERMANN, X. Institutiones
Morales Alphonsianae. Tomus Secundus. 19. ed. Lutetiae
Parisiorum: Emmanuelis Vitte, 1934. n. 1866, 7º. p. 401.
[10] MERKELBACH, Benedictus Henricus. Summa Theologiae Moralis. T. III: De Sacramentis. 11 ed. Brugis: Desclée de Brouwer, 1962. n.
622. p. 584.
[11] NOLDIN, H.; SCHMITT, A. Summa
Theologiae Moralis. V. III: De Sacramentis. Oeniponte: Feliciani Rauch,
1960. 32 ed. n. 409. p. 351-352.
[12] PEETERS, Hermes. Manuale Theologiae Moralis. V. III: Pars Sacramentaria. Roma: Marietti, 1963. p. 166.
[13] PRÜMMER, Dominicus. Manuale
Theologiae Moralis. Tomus III. 12. ed. Friburgi Brisgoviae: Herder, 1955. p.
317.
[14] REGATILLO, Eduardo. Theologiae
Moralis Summa. V. III. Matriti: BAC, 1954. n. 492. p. 365-366.
[15] TANQUEREY, A. Synopsis Theologiae Moralis et Pastoralis. Tomus Primus: De Paenitentia, De Matrimonio
et Ordine. 7. ed. Romae: Desclée, 1920. n. 500. p. 300.
[16] VERMEERSCH, Arthurus. Theologiae
Moralis: principia, responsa, consilia. Tomus III. De personis, de
sacramentis, de Ecclesiae praeceptis et censuris. Romae: Charles Beyaert, 1923.
n. 513, p. 413-414.
[17] WOUTERS, Ludovico. Manuale Theologiae Moralis. Tomus II. Brugis: Carolus Beyaert,
1933. n. 433. p. 339.
[18] BUCCERONI, Ianuario. Institutiones Theologiae Moralis. V. III. 6. ed. Romae: Typographia
Pontificia in Instituto Pii IX, 1915. n. 843. p. 533-534.
[19] AERTNYS, I.; DAMEN, C. Theologia Moralis. Tomus II. 17. ed. Romae: Marietti, 1958. p.
412-414.
[20] DAVIS, Henry. Moral and Pastoral
Theology. V. 3. 8. ed. London, New York: Sheed and Ward, 1959. p. 318.
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