sábado, 28 de junho de 2014

O PAPA FRANCISCO REALMENTE "EXCOMUNGOU" A MÁFIA?

(Em memória do pequeno Nicola Campolongo)

Para não deixar o leitor em suspense, respondo logo a pergunta, para depois explicar as razões da resposta com mais vagar: NÃO, JURIDICAMENTE, O PAPA NÃO EXCOMUNGOU SEJA A MÁFIA, SEJA QUALQUER MAFIOSO EM PARTICULAR.

Na última semana, a imprensa internacional deu destaque a uma homilia do Papa Francisco, em sua recente visita à Calábria, sul da Itália (21 de junho de 2014), em que este afirmou que a máfia local 'Ndrangheta constituía uma "adoração do mal e desprezo do bem comum" e que "aqueles que na sua vida seguem esta estrada do mal, como os mafiosos, não estão em comunhão com Deus: estão excomungados".[1]

Alguns apressaram-se em entender que o Papa teria decretado a excomunhão dos membros da máfia de modo indistinto.

Mas, para que se possa afirmar algo a este respeito, deve-se antes responder à pergunta: o que é uma excomunhão?

A excomunhão é a sanção penal medicinal ou censura eclesiástica com que um fiel é excluído da comunhão com a Igreja e é privado de bens espirituais segundo a norma do direito. Configura a pena mais grave prevista no ordenamento canônico para uma conduta delituosa, tendo por objetivo não só a punição do delinquente, mas sobretudo que se arrependa e se corrija (daí ser dita medicinal).

Por força do cân. 1331, o excomungado:

"Cân. 1331 — § 1. O excomungado está proibido de:
1.° ter qualquer participação ministerial na celebração do Sacrifício Eucarístico ou em quaisquer outras cerimônias de culto;
2.° celebrar sacramentos ou sacramentais e receber sacramentos;
3.° desempenhar quaisquer ofícios ou ministérios ou cargos eclesiásticos ou exercer atos de governo.
§ 2. Se a excomunhão tiver sido aplicada ou declarada, o réu:
1.° se intentar agir contra a prescrição do § 1, n.° l, deve ser repelido ou a ação litúrgica deve cessar, a não ser que obste uma causa grave;
2.° exerce invalidamente os atos de governo, que, em conformidade com o § 1, n.° 3, são ilícitos;
3.° está-lhe vedado usufruir dos privilégios antes concedidos;
4.° não pode obter validamente qualquer dignidade, ofício ou outro cargo na Igreja;
5.° não faz seus os frutos da dignidade, do ofício ou de qualquer outro cargo, ou da pensão que porventura tenha na Igreja."

Por sua vez, a excomunhão pode ser automática (latae sententiae), pela mera prática do delito; ou ferendae sententiae, aquela que não é automática, precisamente por necessitar ser aplicada por meio de uma decisão judicial ou administrativa.

As hipóteses de excomunhão mais conhecidas, em geral, são aquelas latae sententiae (automáticas). São elas:

1. delitos de apostasia da fé, heresia e cisma (cân. 1364);
2. delito de descartar as espécies consagradas ou as subtrair ou reter para fim sacrílego (cân. 1367);
3. delito de usar de violência física contra o Romano Pontífice (cân. 1370);
4. delito de o sacerdote absolver seu próprio cúmplice em pecado contra o sexto mandamento do Decálogo - "não pecar contra a castidade" (cân. 1378);
5. delito de o Bispo, sem mandato pontifício, conferir a alguém a consagração episcopal, e também o que dele receber a consagração (cân. 1382)
6. delito do confessor que viola diretamente o sigilo do sacramento da Confissão (cân. 1388)
7. delito de quem procura o aborto, seguindo-se o efeito (cân. 1398).

Fora destas hipóteses, a excomunhão pode ser aplicada contra outro delito muito grave, mas necessitará ser decretada por decisão judicial ou administrativa da autoridade competente, ou seja, não haverá excomunhão automática fora das 7 hipóteses acima listadas (salvo, obviamente, se o legislador supremo resolver adicionar novas hipóteses legais de excomunhão automática no futuro).

Diante destas explicações, poderia o Papa Francisco, que encerra em sua pessoa o grau máximo dos poderes executivo, legislativo e judiciário na Igreja, ter precisamente decretado esta excomunhão contra os mafiosos, por reputar que os delitos por eles perpetrados são tão graves que mereçam a reprimenda máxima penal-canônica?

É indubitável que o Santo Padre poderia fazê-lo, pois está dotado de poder para tanto. Contudo, por se tratar de uma hipótese de excomunhão ferendae sententiae (não automática), teria que ser inequívoca a sua vontade de legalmente aplicar a pena. Veja-se que a excomunhão é uma pena por um delito canônico, ou seja, deve ser aplicada segundo normas jurídicas. E, pela tradição canônica, isto se faz mediante um instrumento escrito, devidamente publicado por meio oficial e levado ao conhecimento do punido.

Poderia o Santo Padre fazê-lo por meio oral? Sim, poderia, mas, por contrariar a tradição canônica, ao aplicar a pena oralmente, deveria fazê-lo de modo inequívoco e publicamente, deixando claro que sua declaração pública de viva voz tem valor jurídico-canônico punitivo. Embora o tenha feito diante das câmeras de televisão de todo o mundo, em nenhum momento o Papa Francisco deixou claro sua intenção de aplicar uma pena canônica em sentido jurídico em sua homilia do último dia 21 de junho de 2014.

Tanto é assim que o vice-diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Pe. Ciro Benedettini (leia aqui em italiano), esclareceu que as palavras do Papa deveriam ser tomadas não como uma declaração de aplicação de pena canônica, mas como uma confirmação do pensamento da Igreja de que as pessoas que se envolvem em grupos mafiosos e em suas atividades ilícitas pecam gravemente.

Indo além, inclusive por uma questão de justiça, deveria haver a individualização das condutas e da pena. Todo e qualquer tipo de colaboração com a máfia levaria à excomunhão? Receber dinheiro da máfia é pressuposto de excomunhão ou apenas de uma pena mais branda? Qual a gravidade do delito cometido pelo mafioso que levaria à excomunhão? Somente o mafioso homicida? Também o mafioso traficante de drogas? E o mafioso que "vende proteção" ao comércio local? Como se pode ver, as situações envolvidas são assaz complexas para se dizer que um decreto de excomunhão genérico possa ter advindo de uma homilia do Papa Francisco. 

Portanto, o Papa Francisco fez uso meramente retórico da expressão "excomungado", ainda que, do ponto de vista da Teologia Moral, tenha deixado claro o estado da alma daqueles que participam de tais atividades e delas não se arrependem: cometem pecado grave, que afasta de Deus (e arrisca a salvação eterna, embora este juízo seja reservado a Deus) e impede a recepção do sacramento da Eucaristia, bem como legitima que tal sacramento lhe seja negado, caso se saiba publicamente de suas atividades, como recorda o cân. 915:

Cân. 915 — Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto.

Agora, é necessário compreender o contexto em que o Papa disse tais palavras, para entender por que usou devidamente de palavras tão duras, ainda que sem qualquer objetivo de precisão técnico-jurídica (mesmo por que o âmbito de uma homilia não é o locus devido para uma aula de direito canônico nem para aplicar pena canônica).

O Santo Padre estava a celebrar na cidade de Cassano, Calábria, onde ocorreu um crime que chocou toda a Itália no início de 2014: a morte violentíssima do pequenino Nicola Campolongo, de apenas 3 anos, morto com uma brutal pancada na cabeça juntamente com seu avô por rivalidades dentro da máfia e cujo corpo foi queimado dentro de um carro pela máfia nesta cidade.

Veja-se que não houve erro dos homicidas - não se mata uma criança com um golpe na cabeça por erro. Trata-se de um crime bárbaro e pecado gravíssimo que brada aos céus.[2] Para tal crime, não há palavras ou institutos jurídicos que bastem, razão pela qual termino este post pedindo aos leitores que rezem uma Ave-Maria por todas as vítimas da máfia (e para que os mafiosos se arrependam e se convertam, como disse o Papa Francisco no Ângelus de 26/01/2014, em que lembrou o pequeno Nicola dizendo que "seguramente estava no céu com Jesus" - do que tampouco eu duvido).





[1] http://w2.vatican.va/content/francesco/it/homilies/2014/documents/papa-francesco_20140621_cassano-omelia.html
[2] Gênesis 4, 8-10: "8. Caim disse então a Abel, seu irmão: 'Vamos ao campo.' Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o. 9. O senhor disse a Caim: 'Onde está seu irmão Abel?' – Caim respondeu: 'Não sei! Sou porventura eu o guarda do meu irmão?' 10. O Senhor disse-lhe: 'Que fizeste! Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra."

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