sábado, 4 de janeiro de 2014

É NECESSÁRIO CASAR-SE ANTES NO CIVIL PARA CASAR-SE NA IGREJA? - PARTE I


Este tema afeta a todos aqueles que pretendem se casar perante a Igreja Católica, mas também diz respeito às dioceses e suas paróquias, que frequentemente respondem à questão que dá título a esta postagem de modo errôneo, seja na esfera civil, ou, o que é mais grave, também na esfera canônica.

Afinal, É NECESSÁRIO CASAR-SE ANTES NO CIVIL PARA CASAR-SE NA IGREJA CATÓLICA PELA FORMA CANÔNICA?

O cânone 1.071, § 1, 2º do Código de Direito Canônico (Codex Iuris Canonici - CIC) assim estatui:

"Cân. 1071 - § 1. Exceto em caso de necessidade, sem a licença do ordinário local, ninguém assista:

2º a matrimônio que não possa ser reconhecido ou celebrado civilmente;"

Analisemos o cânone por partes.

1o.) Em caso de necessidade, este cânone não se aplica, ou seja, não se está obrigado a obter licença do ordinário do local para as hipóteses previstas no cân. 1071, por exemplo, quando há risco de morte de um dos nubentes.

2o) Por ordinário local, entenda-se em geral o bispo diocesano.

3o.) deve haver licença do ordinário local quando o matrimônio não puder ser reconhecido ou celebrado civilmente.

A chave para a reta exegese do cânone está nas palavras "reconhecido" ou "celebrado" civilmente. O CIC usa estas duas expressões pois se refere a realidades distintas.

No Brasil, bem como em diversos países europeus, há duas formas de celebração do matrimônio previstas em lei civil.
1) celebração de casamento civil.
2) celebração de casamento religioso com efeitos civis.

No primeiro caso, se o casal, além de celebrar o casamento civil, desejar o casamento religioso, deverá fazer duas celebrações independentes. Uma celebração civil e outra celebração perante o ministro religioso. Como são duas celebrações, é irrelevante para a celebração civil que haja matrimônio religioso.  

A segunda forma de se contrair casamento prevista na legislação civil é mediante um casamento religioso com efeitos civis. Neste caso, haverá uma única celebração: a cerimônia religiosa. O casal não volta a fazer uma celebração civil - simplesmente leva ao Registro Civil de Pessoas Naturais (cartório) a certidão de casamento religioso. Esta será registrada para que o casamento religioso seja reconhecido a fim de produzir efeitos civis.

Na prática: se o casal faz duas celebrações, terá de ter testemunhas tanto para o ato civil como para o religioso, bem como casar-se perante duas autoridades distintas (civil e religiosa), em locais distintos e em momentos distintos. Caso opte pelo casamento religioso com efeitos civis, como a celebração é uma só (a religiosa), as testemunhas do ato religioso não precisam ir ao cartório, nem haverá nova celebração perante autoridade civil. 

Em ambos os casos, o casal deve fazer uma habilitação matrimonial perante o Registro Civil de pessoas naturais. No caso do matrimônio religioso, esta habilitação para conferir-lhe efeitos civis poderá ser posterior ao casamento religioso (art. 1516, § 2º do Código Civil brasileiro - Lei 10.406/2002 - e art. 74 da Lei de Registros Públicos - Lei 6.015/1973).

É por este motivo que o CIC fala em casamento celebrado civilmente ou casamento canônico reconhecido pelo ordenamento civil, de acordo com a modalidade de casamento escolhida pelos nubentes segundo a legislação civil. Tanto na situação em que um casamento civil não pode ser celebrado (mas o canônico pode) como na situação em que já se sabe que o casamento canônico não poderá ter efeitos civis, deve-se requerer licença do Ordinário local (em geral, o bispo diocesano, que frequentemente delega tal função a um vigário geral ou a um vigário episcopal).

Continua em outro post...

9 comentários:

  1. Prezado Vitor,
    Parabéns pelo blog. Pretendo acompanhá-lo. Sugiro colocar uma opção (gadgets) de assinar por email.
    Sobre o tema, concordo inteiramente com a argumentação, mas vejo que a exigência da habilitação civil prévia é de ordem prática. Como saberia o pároco se os noivos podem ou não reconhecer ou celebrar o contrato civil? Vejo que esta é a principal razão, que, na prática, funciona (por exemplo, os divorciados já são "filtrados").
    Entendo também, com o Papa João Paulo II, que "ali [no contrato civil] se encontra ao menos um empenhamento relativo a um preciso e provavelmente estável estado de vida" (Familiaris Consortio, 82). Funciona como uma garantia, um seguro ou um dote nos nossos perversos tempos modernos.
    Sem dúvidas, o casamento religioso é o verdadeiro, e o contrato civil um nada. Mas pelo que expus, pelo menos entendo a prática das dioceses.
    Também defendo o casamento religioso neste artigo: http://martyriaeditora.blogspot.com/2013/10/razoes-para-se-casar-na-igreja-ou-nao.html
    e no meu livro: http://loja.cursoscatolicos.com.br/sacramentomatrimonio
    Até breve,
    Márcio

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    1. Olá Marcio! Muito obrigado pelo comentário. O direito não é ciência exata como Matemática, então é sim possível que tenhamos visões diferentes. Contudo, respondendo a seu questionamento, se a Igreja quer saber o estado civil da pessoa, não precisa exigir que ela se case no civil ou faça uma habilitação prévia. Basta que ela peça uma certidão de estado civil ou de nascimento (pois se averbam no registro de nascimento as vicissitudes matrimoniais da pessoa - se é ou já foi casada ou não). A pessoa vai, pede a certidão ao Registro Civil de Pessoas Naturais e pronto. Garanto que obter esta certidão é bem mais simples e barato que realizar seja o casamento civil, seja a habilitação prévia ao casamento religioso com efeitos civis. Ou seja, a solução não é obrigar ninguém a fazer casamento civil ou habilitação prévia como requisito para casamento canônico. E exigir a licença do ordinário local somente nas hipóteses autorizadas pelo CIC, a saber, quando realmente há um impedimento civil para o casamento civil (neste caso, a certidão de estado civil já fará constar tal dado). Não havendo este impedimento, o CIC simplesmente não autoriza a criação desta figura da licença prévia para situações não previstas na norma. Como se trata de uma restrição a um direito fundamental do fiel (direito ao matrimônio), deve a necessidade da licença ser interpretada de modo estrito e não ampliativo.

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    2. E quanto a ver no contrato civil uma garantia ou forma de proteção ao cônjuge? O que acha?

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    3. Na Parte III das publicações sobre o casamento civil e canônico, respondi em um parágrafo esta questão: "Nem se invoque aqui que, com esta exigência, procura-se apenas resguardar os direitos civis das partes envolvidas. Desde que a Constituição de 1988 praticamente equiparou o casamento à união estável, os direitos que seriam garantidos pelo casamento civil serão devidamente garantidos provada a união estável. E que forma mais clara de provar a união estável do que a existência de um casamento canônico? A maioria dos juízes, ao simplesmente ver uma certidão canônica matrimonial, terão por provada a união estável do casal, conferindo a ambos os direitos previstos pela legislação civil, que, atualmente equipara em quase tudo os casados aos companheiros (hoje, inclusive companheiros homossexuais). Aqui não estou a discutir a conveniência, da perspectiva moral, de se equiparar casamento à união estável - somente estou constatando como funciona o direito brasileiro atual, e, neste, os direitos de casados e companheiros são praticamente os mesmos na esfera civil, de modo que o zelo excessivo da Igreja com a condição civil de casado não se justifica."
      Portanto, esta preocupação legítima da Igreja de resguardar os direitos civis das partes (em especial da mulher) e dos filhos perdeu razão de ser depois que a Constituição praticamente equiparou união estável e casamento e colocou um fim à distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. Do ponto de vista patrimonial, rompida a união estável, terá de ser feita partilha dos bens da mesma forma e os filhos terão de receber pensão da mesma forma. Que a Igreja não concorde com a equiparação do casamento com a união estável é uma coisa (já houve tempo em que a Igreja não aceitava o casamento civil), mas o fato é que, no direito brasileiro, para efeitos patrimoniais, a diferença é mínima. Então, para mim isto não é mais argumento (proteção patrimonial do cônjuge e dos filhos). Simplesmente, se não se levar o termo de casamento religioso ao registro civil, o direito brasileiro tenderá a ver esta união como companheirismo ou união estável, aplicando os efeitos patrimoniais respectivos. Para mim, este é um erro de perspectiva do direito civil brasileiro, pois o casamento canônico jamais poderia ser visto como mera união estável - é verdadeiro casamento, celebrado segundo as normas de direito estrangeiro (o direito canônico). Mas este erro da doutrina brasileira é assunto para outra história - na prática, um casamento canônico não levado a registro seria visto como união estável, com efeitos patrimoniais similares ao casamento.

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    4. Resumindo: na minha visão, a Igreja não acompanhou o modo como a legislação civil passou a tratar do tema (se houve evolução ou involução, do ponto de vista moral, isto é outro assunto).

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  2. Do ponto de vista moral, creio que a melhor solução era a dada pelo sistema espanhol antes da revisão da Concordata com a Santa Sé na década de 70 - quem opta pelo matrimônio canônico com efeitos civis fica regido pela lei canônica e não pela lei civil (inclusive, nos termos da lei canônica, sem poder recorrer ao divórcio). A Igreja não se mete com o casamento civil, nem o Estado se mete com o casamento da Igreja. E quem realmente se importasse com o casamento na Igreja iria se casar no direito canônico, sem poder se divorciar, e caso quisesse investigar a nulidade de seu matrimônio, deveria ir a um tribunal eclesiástico e não civil. Era assim que funcionava na Espanha até a década de 1970, e parece-me até hoje o sistema mais racional para conjugar os interesses dos fiéis e o interesse de fazer um contrato civil de quem não liga para a Igreja. Ou seja, se a sociedade é plural, como se diz hoje em dia, nada mais natural que o fiel católico possa escolher ser regido pela lei católica neste particular. A simples possibilidade de não poder se divorciar levaria as pessoas a pensar duas vezes antes de prometer ficar junto para a vida inteira perante o altar de Deus.
    Hoje, nem mesmo o interesse de resguardar patrimonialmente a esposa e filhos pelo casamento subsiste no Brasil, pois a união estável já garante isto (e, no caso dos filhos, nem é necessário ter qualquer união estável para ser patrimonialmente responsável).

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    1. Agora, apenas um reparo - nos posts, fiz a análise somente do cânone 1.071, § 1, 2º do Código de Direito Canônico, e não do 3º. Quando há filhos menores de uma união anterior, ou mesmo a necessidade de pagar pensão a uma companheira anterior (por ela não trabalhar, por exemplo), será necessária sim a licença do ordinário local, mas não em razão de casamento civil que não possa ser celebrado, mas sim como forma de resguardar as obrigações naturais daquela pessoa para com o núcleo familiar que constituiu anteriormente fora do casamento.
      Portanto, nestes casos, aplica-se o cânone 1.071, § 1, 3º do Código de Direito Canônico, e não o 2º. São supostos diferentes, para situações diferentes. Quando escrevi o post, pensei principalmente em um casal que vai se casar pela primeira vez e não em alguém que já foi casado e tem família. Mesmo que alguém tenha sido canonicamente casado, e a Igreja declarou seu casamento nulo, se teve filhos, só poderá casar-se de novo na Igreja com licença do Ordinário, pois ainda que a própria Igreja tenha declarado nulo seu casamento anterior, isto não quer dizer que esta pessoa esteja cumprindo seu dever de prover a seus filhos menores (se não estiver, provavelmente o ordinário local não conferirá a licença).
      Portanto, quando houver pessoas que façam jus a pensão, tal como companheira ou companheiro anterior ou filhos menores, em geral o ordinário local somente dará licença para o matrimônio canônico depois que a pessoa provar que não deixou sua família anterior desamparada.

      Cân. 1071 § 1. Exceto em caso de necessidade, sem a licença do Ordinário local, ninguém assista:
      2o. a matrimônio que não possa ser reconhecido ou celebrado civilmente;
      3o. a matrimônio de quem tem obrigações naturais, originadas de união precedente, para com outra parte ou para com filhos;

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  3. Um distrato de união estável com outra pessoa impede um casamento católico?

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