segunda-feira, 28 de setembro de 2015

EXISTE "DIVÓRCIO" CATÓLICO? (1)

Pode parecer estranho o que vou dizer, mas sim, existe "divórcio" realizado pela Igreja sim, embora pouquíssimas pessoas o saibam.

Mas não é nada disso que vocês estão pensando.

Não, a Igreja não mudou sua doutrina sobre o matrimônio, nem este que vos escreve é a favor da mudança da doutrina da Igreja neste ponto (muito pelo contrário).

Então como é que eu acabei de dizer que existe sim divórcio realizado pela própria Igreja?

Primeiro, vamos conceituar o que é um divórcio. Divórcio é o nome jurídico que se dá à dissolução de um vínculo matrimonial válido.

No divórcio civil, o Estado pretende dizer que houve um casamento válido, mas que ele, Estado, pode dissolver este vínculo (ou, na melhor das hipóteses, que o casal pode dissolver o vínculo, e o Estado homologa esta dissolução). Não é deste divórcio que vamos tratar aqui (mas já adianto - não, o Estado não tem poder para verdadeiramente dissolver um matrimônio válido, mas isto é assunto para outra história).

Já o divórcio realizado pela Igreja também constitui a dissolução de um vínculo matrimonial válido, e a Igreja tem autoridade para fazê-lo. Porém, isso é possível, diante da indissolubilidade do matrimônio válido?

Algumas observações devem ser feitas. A primeira, de que todo e qualquer matrimônio válido, entre cristãos ou não, é naturalmente indissolúvel. Um homem budista que casa com uma mulher budista, e que não exclua as propriedades e fins essenciais naturais do matrimônio, casa-se validamente. O mesmo vale para muçulmanos, judeus, xintoístas, ateus...

O matrimônio é antes uma instituição de direito natural, acessível a membros de toda e qualquer religião (e mesmo aos sem religião). É errado pensar que somente os cristãos, pelo fato de o matrimônio válido entre eles ser também sacramento, se casam de verdade. O Código de Direito Canônico deixa isso bem claro no cânone 1.055 ("Cân. 1055 - § 1. O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo Senhor elevado à dignidade de sacramento").

Ou seja, fica claro que o matrimônio naturalmente constitui consórcio de toda a vida (isto é, indissolúvel naturalmente, para cristãos ou não cristãos), ordenado naturalmente ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole.

E o sacramento? Bem, este consórcio de toda a vida no plano natural, entre batizados (somente entre eles, sejam batizados católicos ou não), foi elevado por Cristo Senhor a uma dignidade sobrenatural, isto é, de sacramento. Portanto, entre cristãos batizados (sejam eles católicos ou não), o matrimônio válido é sempre sacramento também, adquirindo uma especial firmeza precisamente por ser sacramento (Cân. 1056 - As propriedades essenciais do matrimônio são a unidade e a indissolubilidade que, no matrimônio cristão, recebem firmeza especial em virtude do sacramento).

O equívoco de muitos está em achar que somente o matrimônio que é também sacramento é indissolúvel. Não é isso que a Igreja ensina. Qualquer matrimônio válido (mesmo entre não cristãos) é intrinsecamente indissolúvel, seja ele sacramento ou não. Assim, em regra, os matrimônios válidos não podem ser dissolvidos.

Porém, existem exceções em que a Igreja entende que, embora indissolúvel, um matrimônio pode ser dissolvido pela autoridade da Igreja, quando estão envolvidos valores mais relevantes que a própria indissolubilidade.

O primeiro caso a ser analisado é o do matrimônio rato (ratificado) e não consumado. Por rato entende-se um matrimônio válido ratificado por Deus, isto é, sacramental (ou seja, entre batizados). Mas ele jamais chegou a ser consumado sexualmente após a celebração matrimonial. Se houvesse sido consumado, não poderia ser por ninguém dissolvido, nem mesmo pelo Romano Pontífice: "Cân. 1141 - O matrimônio ratificado e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa, exceto a morte."

Sendo válido o matrimônio rato e não consumado (por ser celebrado entre cristãos, também é um sacramento), ele não é, em regra, dissolúvel (lembrem-se: o matrimônio sacramental recebe firmeza especial em virtude do sacramento).

Contudo, pelo fato de que a união sexual entre homem e mulher cristãos casados perfectibiliza e manifesta o serem "uma só carne", semelhante à união de Cristo com a Igreja pela Encarnação, um matrimônio válido, porém não consumado (falta a dimensão de "uma só carne"), pode ser dissolvido, extraordinariamente, pelo Romano Pontífice, no exercício de seu poder vicariante (ou seja, atuando como vigário de Cristo na terra - vicarius, em latim, significa aquele que atua no lugar de outrem. No caso, o Papa atua no lugar do Senhor Jesus, chefe invisível e perpétuo da Igreja[1]). Veja-se a previsão no cânone 1.142: "Cân. 1142 - O matrimônio não consumado entre batizados, ou entre uma parte batizada e outra não-batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra se oponha."

O Papa Pio XII o explica em breves linhas: "O matrimônio ratificado e consumado é indissolúvel por direito divino, enquanto não pode ser dissolvido por qualquer autoridade humana; entretanto, os outros matrimônios, embora sejam intrinsecamente indissolúveis, não possuem contudo uma indissolubilidade extrínseca absoluta mas, tendo-se em conta determinados pressupostos necessários, podem (como se sabe, trata-se de casos relativamente bastante raros) ser dissolvidos pelo privilégio paulino e também pelo Romano Pontífice, em virtude do seu poder ministerial" (Alocução à Rota Romana, 3 de Outubro de 1941: AAS 33 [1941], pp. 424-425)

Vejam: o cânone 1.142 diz que o Papa pode dissolver, mas não está obrigado a tanto, não havendo direito do casal à dissolução. Afinal, estamos tratando de um matrimônio válido, que é também um sacramento. Na Idade Média, por exemplo, isto às vezes ocorria para que a pessoa pudesse ingressar na vida religiosa ou sacerdotal. As pessoas casavam-se validamente, mas não consumavam o matrimônio (por vezes, faziam um voto privado de continência). Algum tempo depois, pediam a dissolução do vínculo, para entrarem na vida religiosa ou sacerdotal. E o Papa concedia, já que não houve consumação. Embora se evite usar o nome divórcio para não suscitar mal entendido ou confusão com o divórcio civil, é exatamente isso que ocorre aqui - uma dissolução de um vínculo matrimonial válido. Esta é a única hipótese em que um matrimônio sacramental válido pode ser dissolvido.

Em próximo post, vamos analisar a questão do privilégio paulino, uma forma de dissolução de um matrimônio natural válido (não sacramental).




[1] "[...] desde esta perspectiva, puede decirse que toda potestad poseída por el Romano Pontífice es vicaria: cabalmente, es el Vicario de Cristo en la tierra. En este sentido, algún sector doctrinal que ha prestado particular atención a estas cuestiones, tratando de sintonizar con la amplia visión de los canonistas y teólogos del Medievo y del siglo XVI, habla también de 'considerar al Papa como vicario de Dios Creador y de Cristo Redentor, el cual tiene una relación particular con todos los hombres, como criaturas de Dios y como redimidos por Cristo, y con el derecho natural, en cuanto es su custodio e intérprete, con facultad de poder dispensar de él en casos particulares, si así lo pide el bien de las almas' ". Comentario Exegético al Código de Derecho Canónico. Vol. III/2. 3. ed. Pamplona: EUNSA, 2002. p. 1.552-1.553.