terça-feira, 22 de julho de 2014

PODE O FIEL AUTORIZAR O SACERDOTE A REVELAR O TEOR DE SUA CONFISSÃO? (II)

Como visto no post anterior sobre o tema, há um interesse da menina abusada de que o sacerdote confirme os fatos que dela ouviu na confissão alguns anos atrás. Veja que o padre não foi testemunha ocular dos abusos - apenas a menina e seus pais pedem que ele confirme que a menina, em confissão, narrou os abusos cometidos por terceiro.

Caberá ao tribunal então valorar este possível depoimento do sacerdote como entender devido. Poderá ser entendido, por exemplo, como uma prova que corrobore as outras provas sobre o abuso, pois, em geral, um católico quando vai ao confessionário está com o espírito desarmado e tende a narrar ao sacerdote apenas fatos verdadeiros que com ele aconteceram. Pode ser, ao revés, que o tribunal entenda que isto nada prova, pois o sacerdote não testemunhou nada, apenas ouviu a versão dos fatos que a menina lhe contou. Ou seja, o valor desta prova para o deslinde da causa dependerá dos julgadores.

É inequívoco, contudo, que se o próprio fiel desobrigou o sacerdote do sigilo, e deseja inclusive que o sacerdote torne público o conteúdo de sua confissão, não há problema algum nisto.

Mas alguém dirá: e o sigilo do acusado, do eventual abusador?

Voltemos ao conceito básico: o sigilo é uma garantia do fiel que se confessa, não de terceiros que foram acusados em confissão. O sacerdote, neste caso, não poderia relatar a situação à polícia não em razão de proteger o suposto abusador, mas sim em virtude do sigilo sacramental da vítima, que poderia não ter interesse em ver esta situação vinda a público. É um direito da suposta vítima que aquilo que foi dito em confissão jamais será revelado. O padre não poderia informar nada a ninguém enquanto a penitente não lhe desse autorização para tanto, de modo que é injusto que ele responda por perdas e danos por algo que não estava autorizado a fazer nos termos da lei canônica. Sem a autorização da menina - que só foi dada anos depois, no tribunal -, o padre não poderia comentar com ninguém o que ouvira em confissão. Agora, no tribunal, já pode, pois foi autorizado pela penitente.

A situação seria diferente se o suposto abusador viesse se confessar com o sacerdote e admitisse que abusou da menina. Neste caso, o sacerdote está obrigado a preservar o sigilo do penitente abusador, e não poderá dizer que este confessou o abuso, mesmo que para isso o sacerdote tenha de enfrentar a prisão.
Então, o sacerdote do nosso caso pode narrar os fatos da confissão feita pela menina, vez que esta já o autorizou a tornar públicas tais confissões. Como disse, aquilo que a menina confessou é apenas a sua versão dos fatos narrada ao sacerdote - não é prova cabal dos abusos.

Por outro lado, fazendo um exercício de raciocínio, pode ser que o sacerdote e a diocese não tenham se equivocado quanto a esta questão, mas que tenham deliberadamente distorcido a doutrina do "sigilo sacramental", mesmo sabendo que ela não se aplicava depois que a penitente autorizou sua revelação, para não serem considerados responsáveis por não informar as autoridades civis.

Esta a consequência de uma lei civil que não respeita a consciência dos ministros religiosos e dos fiéis - levá-los a dizer "verdades pela metade" (no caso, não expor a doutrina do sigilo sacramental em sua inteireza, mas apenas em parte). O sigilo sacramental deve ser guardado a todo custo, menos se o penitente desobrigar o padre. É esta última condição (a autorização do fiel) que o padre e a diocese se "esqueceram" de informar ao tribunal (ou, provavelmente, preferiram não informar, querendo induzir o tribunal a erro de que o sigilo sacramental era absoluto mesmo quando o penitente desobrigava o padre - o que é falso).

A afirmação do sacerdote e da diocese de que o sigilo sacramental é absoluto mesmo contra a autorização do penitente não encontra suporte na esmagadora maioria das opiniões abalizadas sobre o tema, desde S. Tomás de Aquino e S. Boaventura até os dias atuais, como provei acima ao citar 20 autores diferentes que consegui consultar diretamente.

Ora, basta o tribunal civil respeitar o fato de que aquilo que foi dito em confissão não pode ser revelado sem autorização do penitente para se ter claro que nem o padre, nem a diocese poderiam informar qualquer coisa a quem quer que fosse à época em que os fatos ocorreram. Sem o consentimento do penitente, inexistente à época, o padre não pode contar a ninguém - nem mesmo a seu superior eclesiástico.

Como o tribunal parece não comungar deste entendimento (no que está errado), para os magistrados, independentemente da vontade da menina à época (em que possuía apenas 14 anos), o padre teria que informar a polícia o que ouviu em confissão, e seria responsável junto com a diocese por pagar indenização em razão de não ter informado. É a velha história do Estado que não quer respeitar as leis canônicas, por entender, na prática, que ele é uma espécie de "Deus deste mundo" capaz de dominar completamente a vida e a consciência das pessoas - o que é falso. Há uma dimensão religiosa de contato do ser humano com Deus que nem mesmo o Estado pode ousar tocar. E o desrespeito ao sacramento da confissão por parte do Estado é isto - uma grave violação da liberdade religiosa dos cidadãos católicos (no caso dos EUA, também uma grave violação da separação entre Igreja e Estado, a chamada Establishment Clause da Primeira Emenda à Constituição).

A questão é tão séria que S. Tomás e S. Afonso de Ligório afirmam com todas as letras que, se um padre for instado a falar sobre uma confissão quando está obrigado pelo sigilo, pode, sob juramento, afirmar que nada ouviu ou nada sabe. Ora, estariam os dois santos incitando o padre a mentir? De forma alguma. S. Tomás afirma com propriedade (Questão 11 - Artigo 1. Suplemento da Suma Teológica) que o padre, ao ouvir a confissão, age no lugar de Deus, como gestor das coisas divinas. O que vem a conhecer pela confissão o faz in persona Christi, e não como mero homem. Assim, quando jura que falará a verdade e afirma que nada sabe de uma confissão, não está a mentir: jura como homem, e, enquanto mero homem, de fato o padre não pode ouvir confissão alguma nem recebe este conhecimento a partir de um ofício humano. Portanto, como homem que depõe no tribunal, o padre nada sabe, pois não foi enquanto mero homem que ele ouviu a confissão.

Cogito ainda uma outra teoria, que daria contornos heroicos à atuação do padre (embora eu creia que a explicação acima, de distorção do sigilo sacramental para livrar-se de uma injusta condenação, seja mais plausível). O problema aqui pode ser outro: tanto a suposta vítima como o suposto abusador eram da mesma paróquia. Portanto, é possível que o suposto abusador tenha se confessado com o mesmo sacerdote e, quiçá, tenha confessado o crime ao clérigo. Neste caso, o padre não pode sequer mencionar que o suposto abusador se aproximou dele, pois aí estaria a violar o sigilo sacramental do abusador.

Para evitar isto, lança uma cortina de fumaça sobre o pedido da menina, como se não soubesse que estaria autorizado a falar sobre a confissão dela. Faz-se de "bobo" sem o ser. Na verdade, ele sabe que a menina pode autorizar a publicação da confissão dela - o que ele quer evitar é, na verdade, ser colocado em uma situação em que se possa insinuar que o suposto abusador também se aproximou dele para confessar.

Imaginem a cena: na sala de audiência do tribunal, o padre começa a falar da confissão da menina, pois ela o autorizou a tanto. Vocês realmente acham que o advogado da menina ficará só aí ou tentará provocar o padre para extrair alguma informação sobre eventual confissão do suposto abusador? O sistema americano de inquirição de testemunhas é aquele em que o advogado formula questões diretamente à testemunha. Agora, se o padre se recusar a responder qualquer coisa sobre o possível abusador, como isto soará? Se o advogado perguntar: "o acusado se aproximou de você para confessar?" E o padre responder: "não estou autorizado a responder isso", como isto soará? No mínimo, que o padre quer proteger o eventual abusador. Ora, se quer proteger é por que é provável que o abusador tenha se confessado com ele e, mais ainda, é possível que esta confissão tenha algo de podre.

Portanto, se o padre continuar a bater o pé de nada falar e resolver ser preso por isso, terá meu respeito, por qualquer uma das razões acima: seja por mostrar que exigir dele que informasse o conteúdo de uma confissão sem autorização do penitente é um grave atentado contra sua consciência e sua liberdade como ministro religioso, seja por querer proteger um outro penitente que com ele também teria se confessado - o possível abusador.

Simplesmente não creio que ele sofreria consequências tão drásticas (ser preso) por mera ignorância do direito canônico ou da teologia - há excelentes canonistas e teólogos na América do Norte prontos para avisá-lo da possibilidade de falar de uma confissão autorizada pela penitente.

Há mais nesta história do que a simples ignorância do padre e da diocese - ambos devem saber que o sigilo sacramental não se aplica quando a penitente autorizou que se fale sobre a confissão dela. Agora é aguardar para ver como terminará este verdadeiro imbroglio - mais um vindo da Igreja Americana, já tão combalida pelo escândalo dos padres pedófilos.


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