A resposta é SIM, mas existem condições
para isto.
Recentemente, o Cardeal Robert
Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos
Sacramentos, teria dito que não é possível a cristãos não-católicos receber a
Eucaristia em celebrações eucarísticas católicas, pois seria necessário ser
católico para receber a Eucaristia.
Embora o cardeal esteja certo ao
explicitar a regra geral e a razão teológica por trás dela (em regra, a
Eucaristia, como sacramento da unidade, somente é administrada a fiéis
católicos, e não a cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja
Católica Apostólica Romana), na verdade, em relação à "communicatio in sacris"
("comunhão nas coisas sagradas"), a matéria é canonicamente mais
delicada. Em favor do Cardeal Sarah, diga-se que não é canonista, razão pela
qual é escusável que não compreenda todas as dimensões do problema.
A bem da verdade, o próprio Cardeal
Sarah reconhece que a regra geral não está revestida de tamanha rigidez,
quando, mais adiante em sua entrevista, admite que um anglicano possa receber a
comunhão em uma celebração católica, desde que devidamente disposto e em
situações excepcionais. Mas nem todos os veículos de comunicação estão
reproduzindo as palavras do Cardeal Sarah em sua íntegra. Por isso, vale a pena
explicitar aqui as regras canônicas atualmente em vigor acerca da recepção do
sacramento da Eucaristia por cristãos não-católicos.
O tema encontra-se previsto nos cânones
844, §3 e §4 do Código de Direito Canônico. Iniciemos pelo §3:
§ 3.
Os ministros católicos administram licitamente os sacramentos da penitência, Eucaristia
e unção dos enfermos aos membros das Igrejas orientais que não têm plena comunhão
com a Igreja católica, se eles o pedirem espontaneamente e estiverem devidamente
preparados; vale o mesmo para os membros de outras Igrejas que, a juízo da Sé
Apostólica no que se refere aos sacramentos, se acham nas mesmas condições que as
referidas Igrejas orientais.
Este primeiro grande grupo de fiéis
cristãos que pode receber a Eucaristia das mãos de ministros católicos é
composto por aqueles cristãos que pertencem às Igrejas orientais que não estão
em comunhão com a Sé Romana (tanto Ortodoxos como os Ortodoxos
pré-calcedonianos e Ortodoxos pré-efesianos). O §3 também estende esta
disciplina a outras Igrejas que, a juízo da Santa Sé, no que se refere aos sacramentos,
se acham nas mesmas condições que as referidas Igrejas orientais.
Exemplifiquemos falando
concretamente de quais grupos são estes:
1) Igrejas ortodoxas: Patriarcado Ortodoxo Ecumênico de
Constantinopla, Patriarcado Ortodoxo de Alexandria, Patriarcado Ortodoxo de
Jerusalém, Patriarcado Ortodoxo de Antioquia, Patriarcado Ortodoxo da Rússia e as demais Igrejas Ortodoxas (cuja
data de separação formal da Igreja Católica Apostólica Romana é geralmente
situada no ano de 1054);
2) Igrejas ortodoxas pré-calcedonianas: Igreja Copta, Igreja Etíope,
Igreja da Eritreia, Igreja Armênia, Igreja Ortodoxa Siríaca e Igreja Ortodoxa Siríaca
Malankara da Índia (cuja data de separação formal da Igreja Católica Apostólica
Romana e das demais Igrejas Ortodoxas é geralmente situada no ano de 451, por
não aceitarem declarações dogmáticas do Concílio de Calcedônia);
3) Igreja ortodoxa pré-efesiana: Igreja Assíria do Oriente (cuja data
de separação formal da Igreja Católica Apostólica Romana e das demais Igrejas
Ortodoxas é geralmente situada no ano de 431, por não aceitarem declarações
dogmáticas do Concílio de Éfeso).
Quanto aos grupos a eles
equiparados, uma decisão da Congregação para a Doutrina da Fé, de 3 de janeiro
de 1987 (Prot. n. 795/68), afirma que, "dentre as Igrejas que estão na mesma
situação das Igrejas Orientais mencionadas no cân. 844 § 3, incluem-se as
Igrejas véterocatólicas na Europa e a Igreja Nacional Polonesa nos EUA".[1]
O que todos esses grupos de não-católicos
acima descritos têm em comum, a permitir que comunguem das mãos de ministros
católicos bastando que: 1) o peçam espontaneamente; 2) estejam devidamente
preparados?
São comunidades cristãs que
preservaram as principais verdades do depósito da fé, como, por exemplo, a
crença em sete sacramentos, na presença real de Jesus Cristo na Eucaristia, no
papel da Virgem Maria na economia salvífica, na instituição pelo Senhor de uma
hierarquia para governar a Igreja. Por esse motivo, podem ser chamadas
propriamente de "Igrejas", ainda que não em plena comunhão com a Sé
Romana. Essas Igrejas, em regra, mantiveram sacerdócio válido, de modo que os
sacramentos por elas celebrados são válidos (são verdadeiramente sacramentos).
Agora sigamos para o segundo grande
grupo de fiéis cristãos não católicos, previsto no § 4 do cânone 844:
§ 4.
Se houver perigo de morte ou, a juízo do Bispo diocesano ou da Conferência dos Bispos,
urgir outra grave necessidade, os ministros católicos administram licitamente esses
sacramentos também aos outros cristãos que não têm plena comunhão com a Igreja católica
e que não possam procurar um ministro de sua comunidade e que o peçam espontaneamente,
contanto que manifestem, quanto a esses sacramentos, a mesma fé católica e
estejam devidamente dispostos.
Este
grupo é composto por aqueles cristãos que não
preservaram as principais verdades do depósito da fé, por exemplo, não crendo
na instituição divina de sete sacramentos (alguns são assacramentais, outros
creem que Jesus apenas instituiu alguns dos sete, como o batismo e a
Eucaristia), não crendo na Eucaristia como presença real de Jesus Cristo, não
crendo na instituição pelo Senhor de uma hierarquia para governar a Igreja,
entre outros aspectos que são negados.
Nesta situação, encontra-se a grande
maioria dos fiéis oriundos da Reforma Protestante, divididos em milhares de
denominações diferentes espalhadas pelo mundo inteiro. Por não haverem mantido
os aspectos mais essenciais do depósito da fé, tais comunidades não são propriamente
chamadas de "Igrejas" pela Igreja Católica Apostólica Romana, mas são simplesmente denominadas "comunidades
eclesiais". Essas comunidades, em regra, não mantiveram sacerdócio válido,
de modo que os sacramentos por elas celebrados são inválidos (não são verdadeiramente
sacramentos).[2]
Por este motivo, os requisitos cumulativos para que um cristão
pertencente a uma dessas comunidades eclesiais seja admitido à comunhão eucarística
são bem mais rigorosos. São eles:
1) haver perigo de morte ou, a juízo
do Bispo diocesano ou da Conferência dos Bispos, urgir outra grave necessidade;
2) não possam procurar um ministro
de sua própria comunidade eclesial;
3) que o peçam espontaneamente;
4) manifestem, quanto a esses sacramentos,
a mesma fé católica;
5) estejam devidamente dispostos.
Para os cristãos desse segundo grupo
(oriundos da Reforma Protestante), não se exige apenas que peçam o sacramento espontaneamente
e estejam devidamente preparados, como ocorria com os membros do primeiro grupo
(os quais preservaram aspectos essenciais do depósito da fé e sacerdócio válido).
Aqui, exige-se mais: também deve haver perigo de morte ou grave necessidade
estabelecida pelo bispo diocesano ou pela Conferência Episcopal, uma
dificuldade (moral ou física) de procurar um ministro de sua própria comunidade
não-católica, bem como manifestar a fé católica quanto a esses sacramentos
pedidos.
No caso da Eucaristia, a Igreja
Católica Apostólica Romana presume que os membros dos grupos saídos da Reforma
Protestante não creem na presença real de Jesus Cristo no pão e vinho
consagrados. Por essa razão, somente um membro desse grupo que demonstrasse fé
católica quanto a este ponto (ou seja, acreditasse efetivamente na presença
real) poderia ser admitido, desde que cumprisse também as demais condições.
Esta, em breve síntese,
a atual posição da Igreja Católica Apostólica Romana sobre a questão da
recepção de sacramentos das mãos de ministros católicos por parte de cristãos
não-católicos. Retomando a pergunta inicial, isso é sim possível, e as
condições para que isso ocorra dependerão do grupo cristão a que pertence o
fiel não-católico que pede os sacramentos aos ministros católicos.
[2]
À exceção do batismo e do matrimônio, que podem ser válidos mesmo nessas
comunidades eclesiais, por razões que não cabe agora explicar neste post.
Caríssimo Vitor P, bom dia!
ResponderExcluirLendo as explicações com relação ao § 4 do cânone 844, mesmo sabendo que pessoas deste grupo não preservam as mesmas verdades de fé católicas, como fica dificílimo para os que labutam na Pastoral Familiar, no Setor de Casos Especiais (Casos Difíceis), convencerem casais em segunda união, que eles não podem ter acesso ao Sacramento da Penitencia e Reconciliação e, consequentemente, receber de um ministro a Sagrada Comunhão, mesmo sabendo que tudo está de acordo o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e a Doutrina da nossa Santa Igreja.
Será que os grupos do § 3 do cânone 844, têm o mesmo proceder que o nosso, a respeito dos casos especiais?
Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!
Salve Maria!
Caro André,
ResponderExcluirEm verdade, devemos ser mais precisos na formulação - entre os católicos, somente estão impedidos de receber o sacramento da Penitência e Reconciliação, bem como da Eucaristia, casais em segunda união que, cumulativamente: 1) tenham impedimento canônico para celebrar matrimônio com o atual companheiro; 2) não se disponham a viver como irmãos (i.e., abster-se de relações sexuais). Veja que viúvos recasados são casais em segunda união - nem por isso estão impedidos de receber tais sacramentos, pois não possuem impedimento canônico para se casar de novo (mas estão necessariamente numa segunda união quando se casam novamente).
Por outro lado, num casal em que ao menos uma das partes possui impedimento para contrair matrimônio, se a nova união entre homem e mulher for vivida de forma continente (mesma continência exigida dos clérigos casados no rito latino no primeiro milênio), então, afastado o perigo de escândalo, é possível sim a esse casal receber a Penitência e Reconciliação e a própria Eucaristia. Esses casais existem e são um grande testemunho de fidelidade à doutrina da Igreja. Conheço padres que, na direção espiritual, sugerem isso a seus dirigidos nesta situação.
Dito isto, sua pergunta é se as Igrejas Orientais não católicas têm o mesmo proceder que o católico a respeito desses casos em que o casal está em uma segunda união, não vive como irmãos e ao menos um de seus membros possui impedimento para o casamento.
Não, o procedimento é distinto, pois todas as Igrejas Orientais não católicas admitem, ainda que em caráter penitencial, novas núpcias. Existe uma discussão teológica no seio dessas Igrejas se estas novas núpcias seriam ou não verdadeiro matrimônio. O que não há discussão entre elas é que esta segunda união é uma concessão à fraqueza humana, uma aplicação de um princípio chamado de "economia", ou seja abrandamento do rigor da norma (pois o ideal é que somente haja um casamento, ideal este refletido pelos próprios clérigos casados, os quais, depois de viúvos, em regra não podem tornar a se casar). Seja qual for a corrente teológica seguida, fato é que casais nessa situação de segunda união penitencial não são impedidos de receber a Reconciliação e a Eucaristia.
Esta é uma grande diferença entre o catolicismo e praticamente todas as demais Igrejas ou comunidades eclesiais cristãs.
Boa tarde Vitor!
ResponderExcluirComo fica o caso de fiéis católicos romanos que vão à paroquias ligadas à "SSPX" que não está em plena comunhão com a Sé Apostólica?
Boa tarde, Pe. Henrique!
ExcluirA Santa Sé classifica os sacerdotes da FSSPX como estando em situação irregular, mas não que estejam formalmente em cisma (há opiniões de alguns canonistas, como o cardeal Burke, de que estão em cisma, mas são apenas opiniões).
Assim, o cânone 844 não se aplica aos fiéis que participam nas atividades da FSSPX, uma vez que não se trata de fiéis fora da comunhão da Igreja. O cân. 844 aplica-se a fiéis cristãos fora da comunhão da Igreja.