Pode parecer estranho o que vou dizer, mas sim, existe "divórcio"
realizado pela Igreja sim, embora pouquíssimas pessoas o saibam.
Mas não é nada disso que vocês estão pensando.
Não, a Igreja não mudou sua doutrina sobre o matrimônio, nem
este que vos escreve é a favor da mudança da doutrina da Igreja neste ponto (muito
pelo contrário).
Então como é que eu acabei de dizer que existe sim divórcio
realizado pela própria Igreja?
Primeiro, vamos conceituar o que é um divórcio. Divórcio é o nome jurídico que se dá à dissolução de um vínculo matrimonial válido.
No divórcio civil, o Estado pretende dizer que houve um
casamento válido, mas que ele, Estado, pode dissolver este vínculo (ou, na
melhor das hipóteses, que o casal pode dissolver o vínculo, e o Estado homologa
esta dissolução). Não é deste divórcio que vamos tratar aqui (mas já adianto -
não, o Estado não tem poder para verdadeiramente dissolver um matrimônio
válido, mas isto é assunto para outra história).
Já o divórcio realizado pela Igreja também constitui a dissolução de um vínculo matrimonial válido,
e a Igreja tem autoridade para fazê-lo. Porém, isso é possível, diante da
indissolubilidade do matrimônio válido?
Algumas observações devem ser feitas. A primeira, de que
todo e qualquer matrimônio válido, entre
cristãos ou não, é naturalmente indissolúvel. Um homem budista que casa
com uma mulher budista, e que não exclua as propriedades e fins essenciais naturais do matrimônio, casa-se
validamente. O mesmo vale para muçulmanos, judeus, xintoístas, ateus...
O matrimônio é antes uma instituição de direito natural,
acessível a membros de toda e qualquer religião (e mesmo aos sem religião). É
errado pensar que somente os cristãos, pelo fato de o matrimônio válido entre
eles ser também sacramento, se casam de verdade. O Código de Direito Canônico
deixa isso bem claro no cânone 1.055 ("Cân. 1055 - § 1. O pacto
matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de
toda a vida, por sua índole natural
ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo Senhor elevado
à dignidade de sacramento").
Ou seja, fica claro que o matrimônio naturalmente constitui consórcio de toda a vida (isto é,
indissolúvel naturalmente, para cristãos ou não cristãos), ordenado naturalmente ao bem dos cônjuges e à geração
e educação da prole.
E o sacramento? Bem, este consórcio de toda a vida no plano
natural, entre batizados (somente
entre eles, sejam batizados católicos ou não), foi elevado por Cristo Senhor a
uma dignidade sobrenatural, isto é,
de sacramento. Portanto, entre cristãos batizados (sejam eles católicos ou
não), o matrimônio válido é sempre sacramento também, adquirindo uma especial
firmeza precisamente por ser sacramento (Cân. 1056 - As propriedades essenciais
do matrimônio são a unidade e a indissolubilidade que, no matrimônio cristão, recebem firmeza especial em virtude do sacramento).
O equívoco de muitos está em achar que somente o matrimônio
que é também sacramento é indissolúvel. Não é isso que a Igreja ensina.
Qualquer matrimônio válido (mesmo entre não cristãos) é intrinsecamente indissolúvel,
seja ele sacramento ou não. Assim, em regra, os matrimônios válidos não podem
ser dissolvidos.
Porém, existem exceções em que a Igreja entende que, embora indissolúvel,
um matrimônio pode ser dissolvido pela autoridade da Igreja, quando estão
envolvidos valores mais relevantes que a própria indissolubilidade.
O primeiro caso a ser analisado é o do matrimônio rato
(ratificado) e não consumado. Por rato entende-se um matrimônio válido ratificado por Deus, isto é, sacramental (ou seja, entre batizados). Mas ele jamais chegou a ser consumado sexualmente
após a celebração matrimonial. Se houvesse sido consumado, não poderia ser por
ninguém dissolvido, nem mesmo pelo Romano Pontífice: "Cân. 1141 - O
matrimônio ratificado e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder
humano nem por nenhuma causa, exceto a morte."
Sendo válido o matrimônio rato e não consumado (por ser celebrado
entre cristãos, também é um sacramento), ele não é, em regra, dissolúvel
(lembrem-se: o matrimônio sacramental recebe firmeza especial em virtude do
sacramento).
Contudo, pelo fato de que a união sexual entre homem e
mulher cristãos casados perfectibiliza e manifesta o serem "uma só
carne", semelhante à união de Cristo com a Igreja pela Encarnação, um
matrimônio válido, porém não consumado (falta a dimensão de "uma só
carne"), pode ser dissolvido,
extraordinariamente, pelo Romano Pontífice, no exercício de seu poder
vicariante (ou seja, atuando como vigário de Cristo na terra - vicarius, em latim, significa aquele que atua no lugar de outrem. No
caso, o Papa atua no lugar do Senhor Jesus, chefe invisível e perpétuo da
Igreja[1]).
Veja-se a previsão no cânone 1.142: "Cân. 1142 - O matrimônio não consumado entre batizados, ou entre uma parte
batizada e outra não-batizada, pode ser
dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as
partes ou de uma delas, mesmo que a outra se oponha."
O Papa Pio XII o explica em breves linhas: "O matrimônio
ratificado e consumado é indissolúvel por direito divino, enquanto não pode ser
dissolvido por qualquer autoridade humana; entretanto, os outros matrimônios,
embora sejam intrinsecamente indissolúveis, não possuem contudo uma
indissolubilidade extrínseca absoluta mas, tendo-se em conta determinados
pressupostos necessários, podem (como se sabe, trata-se de casos relativamente
bastante raros) ser dissolvidos pelo privilégio paulino e também pelo Romano Pontífice,
em virtude do seu poder ministerial" (Alocução à Rota Romana, 3
de Outubro de 1941: AAS 33 [1941], pp. 424-425)
Vejam: o cânone 1.142 diz que o Papa pode dissolver, mas não está obrigado a tanto, não havendo direito
do casal à dissolução. Afinal, estamos tratando de um matrimônio válido, que é
também um sacramento. Na Idade Média, por exemplo, isto às vezes ocorria para
que a pessoa pudesse ingressar na vida religiosa ou sacerdotal. As pessoas
casavam-se validamente, mas não consumavam o matrimônio (por vezes, faziam um
voto privado de continência). Algum tempo depois, pediam a dissolução do
vínculo, para entrarem na vida religiosa ou sacerdotal. E o Papa concedia, já
que não houve consumação. Embora se evite usar o nome divórcio para não suscitar mal entendido ou confusão com o divórcio
civil, é exatamente isso que ocorre aqui - uma dissolução de um vínculo matrimonial válido. Esta é a única hipótese em que um matrimônio sacramental válido pode
ser dissolvido.
Em próximo post, vamos analisar a questão do privilégio paulino, uma forma de
dissolução de um matrimônio natural válido (não sacramental).
[1] "[...] desde esta perspectiva,
puede decirse que toda potestad poseída por el Romano Pontífice es vicaria: cabalmente,
es el Vicario de Cristo en la tierra. En este sentido, algún sector doctrinal que
ha prestado particular atención a estas cuestiones, tratando de sintonizar con
la amplia visión de los canonistas y teólogos del Medievo y del siglo XVI,
habla también de 'considerar al Papa como vicario de Dios Creador y de Cristo
Redentor, el cual tiene una relación particular con todos los hombres, como
criaturas de Dios y como redimidos por Cristo, y con el derecho natural, en
cuanto es su custodio e intérprete, con facultad de poder dispensar de él en casos
particulares, si así lo pide el bien de las almas' ". Comentario Exegético al Código de Derecho Canónico. Vol. III/2. 3. ed.
Pamplona: EUNSA, 2002. p. 1.552-1.553.
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