Celibato, continência e castidade... Três conceitos que
facilmente são baralhados na linguagem quotidiana, tomados muitas vezes como
sinônimos, mas que são, efetivamente, diferentes. Sua compreensão adequada é
imprescindível para o direito canônico, pois, para cada uma destas figuras,
existem consequências e efeitos jurídico-canônicos diversos, seja em relação à
vida matrimonial, religiosa ou clerical. É impossível compreender retamente,
por exemplo, a questão da possibilidade de homens casados se tornarem presbíteros
(padres), ou mesmo o tema da validade do matrimônio não consumado, se a
diferença entre estes conceitos não for estabelecida.
Para fazer esta distinção, valemo-nos, com adaptações, da excelente
explicação que o canonista estadunidense Edward Peters dá sobre o tema, a qual
tem o mérito de ser concisa e clara (o original em inglês pode ser consultado aqui).
Celibato é um
estado de vida decorrente de uma escolha deliberada de não se casar. Não se
configura pelo simples fato de estar solteiro por circunstâncias quaisquer não
livremente escolhidas. É, na verdade, o estado de vida de um solteiro qualificado pela decisão livre de não se
casar. Um jovem que deseja encontrar uma namorada para casar-se, enquanto
não a encontra, ou, encontrando-a, enquanto ainda a namora, não é propriamente um celibatário, pois não
escolheu deliberadamente o estado de vida de não casar-se, tanto é que busca
encontrar alguém para sua esposa. A pessoa que, querendo casar-se, não encontra
alguém que queira casar-se com ela, não é propriamente celibatária, pois tal decisão não é deliberada livremente, mas uma
imposição das circunstâncias da vida.
Quando não há uma escolha
deliberada por não se casar, é preferível dizer que a pessoa está ou é solteira, mas não que é celibatária. Solteiras
são, por exemplo, as crianças (que poderão ou não desejar casar-se quando
adultas), as pessoas que esperam casar-se ou se preparam para o casamento, a
pessoa que ficou viúva após a morte do cônjuge e que aceitaria casar-se
novamente.
A decisão pelo celibato (portanto, escolha livre e
deliberada por este estado de vida) não necessita sempre ser por motivos nobres
ou altruístas. Celibatário é tanto o sacerdote e o religioso que optam por
este estilo de vida de modo a melhor se consagrar ao serviço de Deus e da
Igreja como a pessoa que não deseja casar-se para não ter responsabilidades
com outras pessoas ou para que não seja importunado em seu estilo de vida, bem
como as pessoas viúvas que preferem fechar-se a um novo casamento após a morte
do cônjuge ou aqueles que não se casam para se dedicar aos cuidados de parentes
idosos ou enfermos. O essencial para configuração do celibato é a escolha
deliberada por um estilo de vida que exclui o casamento por parte de uma pessoa
que, se quisesse, poderia livremente optar pelo casamento (seja lá qual for a
finalidade que se almeja com esta exclusão matrimonial).
Continência, por
sua vez, é a escolha deliberada por
não praticar atos sexuais. A moral cristã exige a continência de todos aqueles
que não se encontram casados, pois somente dentro do casamento é moralmente legítimo
a prática de atos sexuais. Celibatária ou solteira, toda e qualquer pessoa que
não seja casada, seja por opção ou não, é chamada à continência sexual, seja o
rapaz que está namorando, a moça solteira, o padre, a freira, o monge, os
viúvos etc. Historicamente, a Igreja Latina (a Igreja Católica do Ocidente, que
segue o rito romano) também exigia do clero casado tal continência, apesar de
serem casados, mas esta peculiar situação será tratada em outro post.
Para distinguir bem o celibato da continência, podemos
formular um exemplo: um padre celibatário opta por não se casar e o próprio
direito canônico o impede de contrair matrimônio sem a devida dispensa a partir
de sua ordenação diaconal. Embora seja celibatário, pode acontecer de este
padre nem sempre ser continente, pois pode vir, ocasionalmente, a praticar atos
sexuais fora de um matrimônio (hipótese em que, obviamente, peca). Mas veja-se
que o pecado não está propriamente na violação do celibato, mas sim da
continência - o fato de ele praticar ato sexual com determinada pessoa não quer
dizer necessariamente que ele deseje casar-se com ela ou abandonar o estado de
vida celibatário. Significa apenas que o clérigo em questão foi incontinente, ou seja, não seguiu a
continência sexual que a moral cristã exige de toda e qualquer pessoa não
casada (seja clérigo celibatário, religioso ou leigo). A obrigação de manter-se continente, abstendo-se de atos
sexuais, abarca a todos os cristão não casados, não somente a clérigos celibatários e
religiosos.
Quanto aos casados, podem, por razões várias (razões
espirituais, planejamento familiar natural, necessidade de viagem por período
longo etc.), abster-se durante certos períodos da prática sexual, por livre
decisão do casal. Em alguns casos, podem decidir-se (de comum acordo) por não
manter mais relações sexuais. O exemplo máximo desta continência entre casados
é o matrimônio entre a Virgem Ssma. e São José. Veja que ambos eram verdadeiramente
e validamente casados (não eram celibatários), porém foram perfeitamente
continentes dentro do matrimônio. Isto nos prova que ser celibatário e ser
continente são coisas distintas. Obviamente, todo celibatário deve ser também
continente, em razão do fato de que não se pode casar (e o cristão que não se
casa, seja ele quem for, não deve praticar atos sexuais fora do casamento). Já
o solteiro também deve ser continente, mas, se vier a se casar, poderá cessar
esta continência. Os casados podem ser continentes por opção (não se lhes é
exigida tal continência), desde que de comum acordo.
Por fim, a castidade é
uma virtude por meio da qual a pessoa faz uso de sua faculdade sexual de modo
adequado a seu estado de vida. Um cristão não casado (solteiro ou celibatário,
não importa) será casto ao exercer a continência, isto é, ao não praticar atos
sexuais precisamente por não ser casado, pois o seu estado de vida (não casado)
assim o exige. Já a castidade entre casados não pode ser confundida com
abstinência sexual. Os casados são castos tanto mantendo a prática sexual retamente
ordenada entre si, como optando por abstinências periódicas ou por continência
por prazo indeterminado (desde que de comum acordo). São formas distintas de se
viver a castidade entre casados, mas jamais se pode dizer que a prática sexual
retamente ordenada entre casados seja pecaminosa ou contrária à castidade. Pelo
contrário, os casados, quando mantêm relações sexuais normais entre si, são tão
castos quanto ao se absterem de sexo, pois a prática sexual é uma das formas
adequadas de uso da faculdade ou potência sexual dentro do casamento.
Edward Peters finda sua explicação com uma lapidar
conclusão: a Igreja ensina que todos são chamados a observar a castidade
própria de seu estado de vida; a continência é exigida de todos os não casados
(solteiros ou celibatários); e algumas pessoas solteiras, por motivos
louváveis, optarão por não se casar e seguir o estado de vida celibatário, sendo que, em regra, na Igreja Latina (Ocidental), a opção pelo celibato é uma condição para ingresso na vida religiosa ou sacerdotal.
Obs: A questão do clero casado e sua relação histórica e atual com a chamada continência clerical (uma modalidade de continência específica exigida somente dos clérigos casados) será objeto de outros posts.
E possível ser freira em alguma ordem sendo casada mas vivendo em continência?
ResponderExcluirPrezada Claudia,
ExcluirA pergunta é muito boa e a resposta completa necessitaria de um post inteiro. Mas, em breves linhas, em teoria, é possível a uma mulher entrar na vida religiosa mesmo que seja casada e com marido vivo. Para isso: 1) precisaria de consentimento de seu marido para se tornar religiosa; 2) teria de deixar de viver sob o mesmo teto com o marido, e não mais manter vida sexual ativa com ele, passando a viver na comunidade religiosa em que ingressaria; 3) não poderia ter obrigações naturais para com filhos menores de idade; 4) necessitaria de uma dispensa da Santa Sé para fazer isso, já que é casada, e o casamento constitui impedimento para ingresso no noviciado, tornando tal ingresso inválido (cân. 643, §1, 2º).
Na prática, seria difícil de a Santa Sé conceder essa dispensa. Na Idade Média, contudo, isso era relativamente comum, e o próprio Santo Tomás de Aquino prevê essa possibilidade. Na Igreja atual, a chance de isso acontecer é remota, embora não impossível.
Agradeço a resposta e também quero lhe parabenizar por explicar tão claramente estas questões de celibato e continência.
ResponderExcluirAgradeço sua resposta e quero lhe parabenizar por explicar tão claramente estas questões de celibato e continência.
ResponderExcluirSe a pessoa nao é mais virgem, mas decide ser celibatária ela pode?
ResponderExcluirObrigada pela explicação da continência dentro da vida cristã, e também sobre o celibato.
ResponderExcluirFoi muito bom saber das explicações, tanto da continência, e também do celibato.Obrigada.
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