Como dizia em post anterior, a finalidade da norma que exige licença do Ordinário local para o matrimônio canônico em caso de impedimento ao casamento civil é evitar que um matrimônio canônico não possa ter efeitos civis em razão de impedimentos próprios da legislação civil. O caso clássico é o de uma pessoa católica que se uniu a um outro católico mas sem casar-se perante a Igreja, preferindo casar-se apenas no civil.
Como entre os fiéis católicos somente se pode contrair matrimônio por forma canônica (ou seja, seguindo as formas regulamentadas pelo direito canônico), a violação da obrigação do católico de casar-se sob a forma canônica (casando-se apenas no civil) faz com que o seu matrimônio contraído apenas com as formalidades civis seja considerado inexistente para a Igreja. Portanto, não está impedido pelo direito canônico de contrair matrimônio com outra pessoa perante a Igreja, uma vez que jamais foi sacramentalmente casado. Contudo, se não houve divórcio no âmbito civil, esta pessoa continua juridicamente vinculada, pela legislação civil, a seu antigo cônjuge na esfera civil.
Outro exemplo seria o da pessoa que, embora já tenha a idade mínima requerida pelo direito canônico para a validade de seu matrimônio canônico (14 anos para mulheres e 16 anos para homens), não possua a idade mínima para a validade de seu casamento na esfera civil.
Em casos como estes, fica claro que embora possa sim haver matrimônio canônico, há certos impedimentos civis que impedem seja a celebração de um casamento civil, seja o reconhecimento de efeitos civis do casamento canônico (e.g., impedimento de vínculo civil prévio, impedimento de idade etc.).
Para estes casos deve o clérigo que irá assistir ao matrimônio (na teologia católica, quem celebra são os nubentes) exigir a licença do Ordinário local.
Porém, a hipótese mais corriqueira que chega até as paróquias não é a de pessoas que estão impedidas de celebrar o casamento civil ou cujo casamento canônico não possa ser reconhecido civilmente. Trata-se antes de outra situação: os nubentes, ainda que sejam livres para casar-se no civil, não desejam se casar no civil ou não pretendem que seu matrimônio canônico tenha efeitos civis, pelos mais diversos motivos.
No caso do Brasil, o motivo mais encontradiço é aquele de a filha solteira de servidor militar ou servidor público civil continuar a receber pensão por morte de seu genitor. Embora as novas legislações previdenciárias não tragam mais esta possibilidade, antigamente esta existia, em razão da outrora maior vulnerabilidade da mulher, que, em geral, não trabalhava. Nestes casos, a mulher casa-se perante a Igreja, mas não leva a certidão religiosa a registro, de modo que este casamento canônico não produz efeitos civis.
Outra situação, mais relacionada à questão moral, está ligada a casais profundamente católicos, de vivência de fé, que não reconhecem a jurisdição civil sobre seu matrimônio, reputando que o chamado "casamento civil" não é verdadeiro matrimônio, mas apenas aquele contraído perante a Igreja.
Seja qual for o motivo que impeliu os noivos a não desejarem casar-se no civil, percebe-se que o Código de Direito Canônico não está a exigir licença para estas hipóteses. O texto do cânone é claro: somente se exige a licença do Ordinário local quando há impedimento para a celebração do casamento civil ou para reconhecimento dos efeitos civis de um matrimônio canônico. A hipótese em que os nubentes podem casar-se no civil, mas não o desejam, é distinta. Não há aí impedimento civil, mas mera faculdade - não há obrigação, no direito brasileiro, de casar-se no religioso e no civil.
Por esta razão, é equivocada a postura das secretarias paroquiais ou das dioceses que exigem licença do Ordinário local para o casamento canônico de pessoas que são livres para casar-se validamente no civil, mas que simplesmente não o querem fazer. A norma do cân. 1.071, § 1, 2º, simplesmente não foi pensada para a situação em que os noivos poderiam se casar no civil, mas não o querem, desejando apenas casar-se perante a Igreja.
A lógica é simples de compreender - a exigência feita pelas paróquias é inócua. Em geral, as paróquias erroneamente exigem que, ao iniciar-se o processo de habilitação matrimonial canônica, o casal ou já seja casado no civil ou traga cópia da certidão de habilitação matrimonial prévia para o casamento religioso com efeitos civis feita perante o Registro Civil de Pessoas Naturais (este último caso é mais comum). Ocorre que a habilitação prévia feita perante a autoridade civil é somente isto - uma habilitação - e não um casamento. Portanto, o casal pode muito bem apresentar a tal certidão de habilitação e, depois que se casar no religioso, simplesmente não levar a registro a certidão de casamento religioso.
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