No post anterior sobre o tema, analisamos a
única hipótese de matrimônio sacramental válido que pode ser dissolvido: o
matrimônio rato e não consumado.
Contudo,
também dissemos que o matrimônio meramente natural (matrimônio entre não-batizados
ou entre um batizado e um não-batizado), embora não seja sacramento, é
verdadeiro matrimônio e, como tal, em regra é naturalmente indissolúvel. Mas,
por não ser sacramento, sua indissolubilidade não está ornada da mesma firmeza
presente no matrimônio sacramental, conforme ensina o cân. 1056[1].
Por isso, existe mais de uma hipótese em que o matrimônio natural válido pode
ser dissolvido (repita-se: em se tratando de matrimônio sacramental válido, há uma
única hipótese de dissolução - o matrimônio rato e não consumado).
Expliquemos a
primeira hipótese de matrimônio natural válido que pode ser dissolvido:
trata-se da situação abarcada pelo chamado privilégio
paulino.
Em nome de
um bem maior, qual seja, a preservação
da fé[2]
(e, obviamente, a salvação da alma), o matrimônio válido entre não-cristãos (que
não é sacramento), naturalmente indissolúvel, pode excepcionalmente ser
dissolvido para privilegiar a fé de um dos cônjuges que se converte ao
cristianismo (não necessariamente ao catolicismo,
basta que se torne cristão por meio de Igreja ou comunidade eclesial cristã não-católica
que administre validamente o batismo). É o privilégio
paulino, previsto diretamente pelo Apóstolo São Paulo (daí seu nome).
Vejamos a passagem bíblica que lhe serve de fundamento (I Coríntios 7, 12-15):
"Aos
outros, digo eu, não o Senhor: se um irmão desposou uma mulher pagã (sem a fé)
e esta consente em morar com ele, não a repudie. Se uma mulher desposou um
marido pagão e este consente em coabitar com ela, não repudie o marido. Porque
o marido que não tem a fé é santificado por sua mulher; assim como a mulher que
não tem a fé é santificada pelo marido que recebeu a fé. Do contrário, os
vossos filhos seriam impuros quando, na realidade, são santos. Mas, se o pagão quer separar-se, que se
separe; em tal caso, nem o irmão nem a irmã estão ligados. Deus vos chamou
a viver em paz."
É justamente
isso que a Igreja prevê no cânone 1.143 do Código de Direito Canônico:
"Cân.
1143 - § 1. O matrimônio celebrado entre
dois não-batizados dissolve-se pelo privilégio paulino, em favor da fé da parte que recebeu o
batismo, pelo próprio fato de esta parte contrair novo matrimônio, contanto que a parte não-batizada se afaste.
§ 2.
Considera-se que a parte não-batizada se afasta, se não quer coabitar com a parte batizada, ou se não quer coabitar com ela pacificamente sem ofensa ao Criador, a
não ser que esta, após receber o batismo, lhe tenha dado justo motivo para se
afastar."
Portanto,
busca-se tutelar a fé do convertido ao cristianismo nestas duas situações: 1) se
o convertido for abandonado pelo cônjuge não-cristão; 2) mesmo não abandonando
o convertido, o não-cristão não deseja conviver pacificamente sem ofensa ao
Criador (ex: colocando obstáculos para a vivência da fé do cônjuge convertido)[3].
Nestes casos, esse matrimônio natural válido pode ser dissolvido em favor da fé do convertido, desde que
o convertido, após receber o batismo, não tenha dado justo motivo para o
não-cristão se afastar (por exemplo, o não-cristão pode legitimamente
afastar-se caso seja traído pelo convertido). Vê-se que a iniciativa de
abandonar o convertido ou de não desejar conviver pacificamente com ele sem
ofensa ao Criador deve ser sempre da parte não-cristã, e não do convertido.
Esse
matrimônio natural, por não estar dotado da mesma firmeza que o matrimônio
sacramental, é dissolvido sem necessidade da intervenção do Papa, sobretudo
pelo fato de que tal dissolução está prevista pelo próprio São Paulo como
exceção à regra. No momento mesmo em que o cristão convertido casa-se de novo
validamente, dissolve-se o vínculo natural anterior.
Mas atenção:
como o matrimônio natural anterior foi válido, o novo matrimônio contraído em
razão do privilégio paulino é, na verdade, o segundo matrimônio da pessoa. Essa pessoa terá sido casada duas vezes, de
forma legítima e aceita pela Igreja.
Contudo, para
que isso ocorra, é necessário antes perguntar ao cônjuge não-cristão que se afastou
sem justo motivo duas coisas: 1) se não
deseja também ele se batizar; 2) se ao menos não deseja conviver pacificamente com
o cônjuge que se converteu ao cristianismo, sem ofensa ao Criador (cân. 1.144,
§1)[4].
Esta
interpelação é feita por autoridade do Ordinário local (em geral, o bispo) da parte convertida, devendo
esse Ordinário conceder ao outro cônjuge, se este o pedir, um prazo para
responder, mas avisando-o que, transcorrido inutilmente esse prazo, seu silêncio
será interpretado como resposta negativa (cân. 1.145, §1). Se não for possível
a interpelação feita pelo Ordinário, poderá ser feita particularmente pela
parte convertida (cân. 1.145, §2), devendo, em ambos os casos, constar
legitimamente no foro externo a interpelação e seu resultado (cân. 1.145, §3),
sendo comum, por exemplo, que se faça constar por escrito a resposta da parte
não-convertida ou que se certifique a sua negativa em responder.
A
interpelação deve ser feita depois do batismo da parte convertida, mas o
Ordinário local, por causa grave, pode permitir que a interpelação se faça
antes do batismo e mesmo dispensar dela, antes ou depois do batismo, contanto
que conste por um processo, ao menos sumário e extrajudicial, que a
interpelação não pode ser feita ou que seria inútil (cân. 1.144, §2).
Se o cônjuge
não-cristão também resolver se batizar, o matrimônio natural se torna, no
momento do batismo, sacramental (pois, nesse caso, passará a ser um matrimônio
entre dois cristãos). Havendo a consumação após o batismo de ambos, este
matrimônio sacramental, além de rato, será consumado, não podendo ser
dissolvido senão pela morte (obviamente, na rara hipótese em que o cônjuge
não-cristão aceitar o batismo, se estiver afastado do cônjuge anteriormente convertido,
o matrimônio será sacramental, mas, por ausência de consumação, poderia ser
dissolvido pelo Romano Pontífice, como vimos no primeiro post).
Se o cônjuge
não-cristão aceitar conviver pacificamente e sem ofensa ao Criador, então o
cônjuge convertido não terá direito a casar-se pela segunda vez. Recorde-se que
o privilégio paulino existe para salvaguardar a fé - se o outro cônjuge não é
cristão, mas não prejudica a vida de fé do convertido, nem o abandona, não há
razão para a dissolução do matrimônio.
Veja que o
Ordinário local (em geral, o bispo) não dissolve o primeiro matrimônio natural
válido. Ele simplesmente conduz (em regra) a devida interpelação ao cônjuge
não-cristão, para certificar-se de que as condições estão presentes. Estando
provado que estão presentes as condições para uso do privilégio paulino, o convertido
tem direito a casar-se novamente. Mas será o próprio convertido que, ao
casar-se de novo, dissolverá o vínculo anterior. No momento em que o cristão
convertido casa-se de novo validamente, dissolve-se o vínculo natural anterior.
E isso não decorre de nenhum poder episcopal de dissolver matrimônios válidos (pois
não tem esse poder, só o Romano Pontífice, vigário de Cristo, o tem), mas sim da exceção diretamente manifestada
pela autoridade apostólica de São Paulo.
O mais comum
é que a parte convertida ao cristianismo (não necessariamente convertida ao catolicismo) use o
privilégio paulino para casar-se pela segunda vez com um católico (cân. 1.146).
Mas o Ordinário local, por causa grave,
pode conceder que a parte batizada, usando do privilégio paulino,
contraia novo matrimônio com parte não-católica, batizada ou não (cân. 1.147[5]),
observando-se as prescrições sobre matrimônios mistos (católico casando-se com um
cristão não-católico) e com disparidade de culto (católico casando-se com
não-cristão).
A razão de se exigir causa grave é óbvia: se o convertido acabou de ter
um matrimônio natural dissolvido em favor
de sua fé, deve-se evitar que entre novamente em um matrimônio natural com
um não-cristão (que não é sacramental), ou que entre em um matrimônio
sacramental com um cristão de fé diferente (o que também tem potencial para trazer
problemas práticos no cotidiano do casal).
Por fim, elencamos as situações em que o privilégio paulino pode ser
invocado[6]:
1) um católico quer casar-se com um convertido ao catolicismo que não
era previamente batizado (batizou-se ao tornar-se católico) e que, antes do
batismo, contraíra casamento com um não-cristão;
2) um católico quer casar-se com um convertido ao cristianismo em Igreja
ou comunidade eclesial cristã não-católica, e que, antes do batismo (batizou-se
ao tornar-se cristão não-católico), contraíra casamento com um não-cristão;
3) um convertido ao catolicismo que não era previamente batizado (batizou-se
ao tornar-se católico) e que, antes do batismo, contraíra casamento com um
não-cristão, quer casar-se com um cristão não-católico ou com um não-cristão
(cân. 1.147).
No próximo post, continuaremos
tratando de outras hipóteses de matrimônio
natural válido que pode ser dissolvido.
[1] Cân.
1056 - As propriedades essenciais do matrimônio são a unidade e a indissolubilidade,
que, no matrimônio cristão, recebem
firmeza especial em virtude do sacramento.
[2] Cân.
1150 - Em caso de dúvida, o privilégio da fé goza do favor do direito.
[3]
Podem ser vistos como ofensa ao Criador, para efeitos deste cânone: "pese
a querer cohabitar, lo hace de modo que implica algo contrario a la recta
ordenación del matrimonio, es decir, no lo hace sine contumelia Creatoris). Esta última puede consistir en atentación
contra la libertad del bautizado para la práctica de la religión; inducción al pecado;
vida conyugal deshonesta; oposición a la educación cristiana de los hijos; ataques
a la fe del convertido; poligamia; maltratos; y otras conductas similares."
[4] Cân. 1144 - § 1. Para
que a parte batizada contraia validamente novo matrimônio, deve-se sempre
interpelar a parte não-batizada:
1º se também ela quer receber o batismo;
2º se, pelo menos, quer coabitar pacificamente com a
parte batizada, sem ofensa ao Criador.
[5] Cân.
1147 - Todavia, o Ordinário local, por causa grave, pode conceder que a parte batizada,
usando do privilégio paulino, contraia novo matrimônio com parte nãocatólica,
batizada ou não, observando-se também as prescrições dos cânones sobre matrimônios
mistos.
[6]
Extraído de STUART, Eileen. Dissolution
and Annulment of Marriage by the Catholic Church. Sydney: The Federation
Press, 1994. p. 106.