Como sempre faço, começo respondendo que, ao que me parece, NÃO, o chamado “rito tridentino” se transformou em um rito litúrgico autônomo que, atualmente, não é mais o rito romano propriamente dito (ele foi historicamente o rito romano, não o é mais), mas sim outro rito integrante da família litúrgica ocidental (família litúrgica dos ritos usados pelo que hoje chamamos de Igreja Latina).
Em primeiro lugar, usarei aqui o nome popular “rito tridentino” como sinônimo do rito romano em sua forma padrão ou ordinária que estava em uso na Igreja Latina até a reforma litúrgica ordenada pelo Concílio do Vaticano II.
Quando, em 16 de julho de 2021, foi promulgado o Motu Proprio Traditionis Custodes, sobre o uso da Liturgia Romana anterior à reforma de 1970, algumas pessoas vieram perguntar-me qual passava a ser a situação do chamado “rito tridentino” na Igreja, já que não se falava mais em “Forma Ordinária” e “Forma Extraordinária” do mesmo Rito Romano, como ocorria no Motu Proprio Summorum Pontificum de 2007.
Agora, o art. 1 de Traditionis
Custodes é bem taxativo: “Art. 1. Os livros litúrgicos promulgados
pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os
decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex
orandi do Rito Romano”.
Confesso que, num primeiro momento, a frase “única
expressão da lex orandi do Rito Romano” causou-me estranheza.
Acaso a Santa Sé não estaria ciente de que mesmo o rito romano reformado após o
Concílio do Vaticano II admite variantes, tais como o uso zairense e o uso
anglicano? E, se bem é assim, o rito “tridentino” também não seria mais uma
dessas variantes (daí ser chamado por Summorum Pontificum de
Forma Extraordinária do Rito Romano)?
Como então poderia haver uma única expressão
da lex orandi do Rito Romano? Os fatos concretos não
contrariariam essa afirmação?
Depois, relendo com calma e fazendo nova reflexão
sobre o tema, cheguei a outra visão do assunto, que me permite entender de
forma mais adequada o art. 1 da Traditionis Custodes. É claro que
esta é apenas a minha interpretação da questão, pois o próprio Motu Proprio não
traz maiores explicações sobre a matéria. Passo então a expor essa
interpretação.
A chamada família litúrgica ocidental é
composta por diversos ritos usados pela Igreja Latina (a maior de todas as
Igrejas sui iuris que compõem a Igreja Católica), dentre os
quais podemos elencar, por exemplo, o rito ambrosiano (ou milanês, presente até
hoje na Arquidiocese de Milão – Itália); o rito hispânico ou mozárabe
(residualmente celebrado na Espanha em Sevilha e Toledo) e o rito lionês
(residualmente celebrado em Lyon, na França). Contudo, nesta família, o rito
mais comum e espalhado por todo o mundo é o rito romano, este mesmo
rito que, por determinação do Concílio do Vaticano II, sofreu reformas
litúrgicas a partir de 1969, ainda no pontificado de São Paulo VI.
Embora novos livros litúrgicos, após o Concílio do
Vaticano II, tenham sido elaborados pela Santa Sé para o rito romano (sendo que
alguns desses novos livros só vieram à luz no pontificado do Papa São João
Paulo II), desde o início da reforma litúrgica, autorizações foram dadas a
alguns sacerdotes (sobretudo idosos) e grupos reduzidos de fiéis para que
continuassem a usar a liturgia do rito romano anterior à reforma litúrgica determinada
pelo Concílio Vaticano II. A permanência, ainda que residual, da possibilidade
de celebração do popularmente conhecido como “rito tridentino” atesta o fato de
que ele não foi abolido, mas meramente teve seu uso
restringido, de modo a dar mais espaço para o uso reformado do rito romano.
Summorum Pontificum de 2007 diminuiu as
restrições para uso dessa forma anterior do rito romano, atestando algo que já
estava claro: que ele não havia sido abolido e que a autoridade competente da
Igreja, do mesmo modo que tem poder para restringir, tem poder para ampliar o
uso, como de fato foi feito por esse Motu Proprio de 2007.
Ocorre que, em 16 de julho de 2021, a autoridade
competente da Igreja novamente restringiu o uso do dito “rito tridentino”, mas
novamente sem aboli-lo, por meio do Motu Proprio Traditionis Custodes.
Todavia, fez isto de uma maneira curiosa, que, se lida com pressa, pareceria
ter abolido o “rito tridentino”, ao estabelecer no art. 1: “Os livros
litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em
conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única
expressão da lex orandi do Rito Romano”.
Ora, se bem é assim, então o “rito tridentino”
teria sido abolido, pois ele não é mais uma expressão da lex
orandi do Rito Romano. Mas essa afirmação seria absurda, pois o
próprio Traditionis Custodes, em seus artigos subsequentes, vai
regulamentar o modo pelo qual este “rito tridentino” poderá ainda ser
celebrado.
Então como interpretar de forma não absurda o art.
1?
Uma das chaves de interpretação razoável deste art.
1 parece-me que se encontra no art. 4: “Art. 4. Os presbíteros ordenados após a
publicação do presente Motu proprio, que pretendam celebrar com o Missale
Romanum de 1962, devem dirigir um requerimento formal ao Bispo diocesano o
qual, antes de conceder a licença, consultará a Sé Apostólica”.
Esta sistemática de obter licença prévia da Santa
Sé antes de poder começar a celebrar um determinado rito católico é bastante
conhecida na praxe da Igreja, quando estamos a tratar de sacerdotes bi-rituais,
isto é, com autorização dada pela Santa Sé para celebrar os sacramentos em
outro rito católico diferente do seu próprio.
Assim, se um sacerdote católico oriental deseja,
por exemplo, celebrar também no rito romano, seu Bispo não pode conceder a ele
essa faculdade sem que antes a Sé Apostólica mesma conceda essa faculdade
bi-ritual, tal como expressamente previsto no cânon 674, § 2 do Código de
Cânones das Igrejas Orientais de 1990 (o equivalente ao Código de Direito Canônico
latino, só que para os católicos orientais):
"Cân. 674 - § 1. Na celebração dos sacramentos, o que está contido nos livros litúrgicos deve ser observado diligentemente.
§ 2. Um ministro deve celebrar os sacramentos de acordo com as prescrições litúrgicas de sua própria Igreja sui iuris, salvo disposição legal em contrário ou que tenha obtido uma faculdade especial da Sé Apostólica."
Ora, se a licença da Sé Apostólica é necessária
justamente por se tratar de ritos diferentes, então o fato de que, a partir de
agora, os novos sacerdotes de rito romano, para poderem celebrar o “rito
tridentino”, precisarão da autorização de Roma faz com que esse regime de dois
ritos diferentes se aplique aqui também.
Exemplo: se um sacerdote da Igreja Católica Armênia
quiser celebrar no rito romano, por ser um rito diferente do dele, ele
precisará pedir licença para a Santa Sé.
Agora, se um neosacerdote do rito romano quiser
celebrar no “rito tridentino”, por ser um rito diferente, ele também precisará
pedir licença para a Santa Sé.
Logo, parece ser que a Santa Sé está a indicar que
o rito romano atual e o “rito tridentino” já não são o mesmo rito, mas ritos
diferentes, ainda que próximos e ambos pertencentes à mesma família litúrgica
ocidental.
Tal interpretação parece ser corroborada por uma
entrevista dada em 01/09/2021 pelo Papa Francisco a Carlos Herrera, para uma
rádio espanhola, ao tratar do tema:
“Carlos Herrera: No sé si el Papa Francisco es muy de dar un puñetazo con fuerza encima en la mesa. ¿Quizá el último golpe sobre la mesa ha sido el documento pontificio en el que se limita la celebración de las 'misas tridentinas'? Y le pido además que le explique a mi audiencia qué es la 'misa tridentina', qué tiene la misa tridentina que no sea preceptiva.”
Papa Francisco: […] Después de este motu proprio, un sacerdote que quiera celebrar no está en las condiciones de los otros --que era por nostalgia, por deseo, etc-- y ahí sí tiene que pedir permiso a Roma. Una especie de permiso de bi-ritualismo, que solamente lo da Roma. [Como] un sacerdote que celebra en rito oriental y rito latino, es bi-ritual pero con permiso de Roma. O sea, hasta el día de hoy, los anteriores siguen pero un poco ordenados. Más aún, pidiendo que haya un sacerdote que esté encargado no solamente de la liturgia sino de la vida espiritual de esa comunidad. Si usted lee bien la carta y lee bien el decreto, va a ver que simplemente es reordenar constructivamente, con cuidado pastoral y evitar un exceso a quienes no están…”
Veja-se como Papa Francisco também traça a analogia
entre a licença de bi-ritualidade para sacerdotes católicos orientais e a
“bi-ritualidade” para que novos sacerdotes de rito romano possam também
celebrar o “rito tridentino”.
O Papa Francisco conhece bem essa sistemática, já
que foi por anos, na Argentina, o Ordinário para os fiéis católicos orientais
sem Ordinário próprio na Argentina, isto é, o Bispo que cuidava dos fiéis
católicos orientais sem Bispo oriental próprio na Argentina. Ou seja, Traditionis
Custodes parece ter sido pensado, nesse particular, nos moldes do
previsto no cânon 674, § 2 do Código de Cânones das Igrejas Orientais de 1990
anteriormente exposto, isto é, partindo do pressuposto de que se trata
de ritos católicos distintos, a exigir licença da Santa Sé para celebrar no
outro rito diferente.
Explanada essa questão, ainda pareceria ficar uma
lacuna: mas, se bem é assim, como resolver o problema de que, no próprio rito
romano atual e reformado, existem o uso zairense (africano) e o uso anglicano
(das comunidades recebidas no catolicismo vindas do anglicanismo)? Pois o art.
1 de Traditionis Custodes afirma: “Art. 1. Os livros
litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em
conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única
expressão da lex orandi do Rito Romano”. Então o uso
zairense e o uso anglicano não seriam formas de expressão da lex
orandi do rito romano?
De forma alguma. O art. 1 é claro em dizer que “os
livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e
João Paulo II são a única expressão da lex orandi do
Rito Romano”. Ora, o uso zairense e o uso anglicano foram aprovados, bem como
seus livros litúrgicos, durante o pontificado de São João Paulo II.
Logo, estão plenamente cobertos pela previsão normativa do art. 1, sendo
portanto também expressão da lex orandi do rito romano atual
(o “rito tridentino”, nessa interpretação, já não é mais o rito romano, e sim
um rito autônomo).
Esses dois usos, zairense e anglicano, são
expressão do rito romano precisamente pelo fato de que são aprovados pós-reforma
do Concílio Vaticano II, durante o pontificado de São João Paulo II,
expressamente citado no art. 1 da Traditionis Custodes, o que
explica o porquê de esses dois usos serem considerados expressão do rito romano
e o “rito tridentino” já não ser mais expressão desse mesmo rito romano.
Como dito no início, essa é uma forma de buscar
interpretar razoavelmente o art. 1 da Traditionis Custodes, mas
apenas os anos vindouros irão nos indicar os rumos que a Igreja tomará em
relação a esse antigo e venerável rito (aqui chamado de “tridentino”), pois nas
últimas décadas presenciamos modificações no regime de permissões para sua
celebração, ainda que nunca tenha sido abolido.